11
View
Open Access Peer-Reviewed|
ARTIGO DE REVISÃO

Comparação crítica das classificações americanas e europeia de anomalias müllerianas: prós e contras

Critical comparison of American and European classifications of müllerian anomalies: pros and cons

Luís Ronan Marquez Ferreira de Souza1,a; Cinthia Callegari Barbisan2,b; Cecília Vidal de Souza Torres3,c; Isadora Balderama Canedo3,d

DOI: 10.1590/0100-3984.2024.0096
e20240096
Publicado em: 14 de Maio de 2025

RESUMO

As anomalias müllerianas representam um espectro de malformações congênitas do trato reprodutivo feminino. Ao longo das décadas, diversas classificações foram criadas para categorizá-las. Inicialmente proposta por Kaufmann e Jarcho em 1946, a classificação da Sociedade Americana de Fertilidade de 1988 foi considerada simples e prática e foi amplamente utilizada, mas criticada por sua subjetividade e limitação em classificar anomalias complexas. Em 2013, a Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia/Sociedade Europeia de Endoscopia Ginecológica introduziram uma classificação mais detalhada, incluindo também anomalias cervicais e vaginais, embora mais complexa e com risco de diagnósticos excessivos. A Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, em 2021, atualizou a classificação com o intuito de simplificar e melhorar a precisão diagnóstica, expandindo categorias e definindo critérios mais objetivos. A nova classificação visa facilitar a comunicação entre profissionais e aprimorar o manejo clínico, destacando a importância de atualizações contínuas para melhorar os resultados reprodutivos e a qualidade de vida das pacientes afetadas por essas anomalias. Este artigo tem como objetivo discutir os pontos fortes e as limitações de cada uma dessas classificações, fornecendo uma análise crítica sobre seus impactos no diagnóstico e tratamento das anomalias müllerianas. Além disso, propõe-se levantar aspectos que podem ser aprimorados em futuras revisões, visando maior precisão diagnóstica e aplicabilidade clínica.

Palavras-chave: Anomalias congênitas; Ductos müllerianos; Classificações; Diagnóstico; Radiologia; Diagnóstico por imagem.

ABSTRACT

Müllerian anomalies represent a spectrum of congenital malformations of the female reproductive tract. Over the decades, various classifications have been developed to categorize these anomalies. Based on a classification proposed by Kaufmann and Jarcho in 1946, the classification devised by the American Fertility Society in 1988 was considered simple and practical; although it faced criticism for its subjectivity and limitations in classifying complex anomalies, it was widely adopted. In 2013, the European Society of Human Reproduction and Embryology and the European Society for Gynaecological Endoscopy introduced a more detailed classification, which, albeit more complex and with a risk of overdiagnosis, also included cervical and vaginal anomalies. In 2021, the American Society for Reproductive Medicine updated the classification with the aim of simplifying and improving diagnostic accuracy, expanding the categories, and defining more objective criteria. This new classification seeks to facilitate communication among professionals and enhance clinical management, emphasizing the importance of continuous updates to improve reproductive outcomes and the quality of life for patients affected by these anomalies. This article aims to discuss the strengths and limitations of each of these classifications, offering a critical analysis of their impact on the diagnosis and treatment of müllerian anomalies. It also seeks to highlight aspects that may be refined in future revisions to achieve greater diagnostic precision and clinical applicability.

Keywords: Congenital abnormalities; Mullerian ducts; Classification; Diagnosis; Radiology; Diagnostic imaging.

INTRODUÇÃO

As malformações müllerianas apresentam amplo espectro de apresentações e, portanto, a completa categorização dessas anomalias é desafiadora. Ao longo das últimas décadas, diferentes sociedades têm proposto classificações buscando a melhor abordagem diagnóstica.

A sua prevalência varia consideravelmente de acordo com a população estudada, sendo observada em até 25% das mulheres com histórico de infertilidade e abortos espontâneos(1). As anomalias müllerianas estão associadas a maior incidência de partos prematuros, ruptura prematura de membranas, má apresentação fetal e mortalidade perinatal. A incidência de parto prematuro varia conforme o tipo de anomalia, sendo mais frequente em casos de útero didelfo, enquanto o risco de abortos é mais elevado em pacientes com útero septado(2).

Este artigo compara as classificações propostas pela Sociedade Americana de Fertilidade (AFS) em 1979 e 1988(3,4) com as classificações atuais da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM) de 2021 e da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE)/Sociedade Europeia de Endoscopia Ginecológica (ESGE) em 2013(5), destacando suas vantagens, limitações e implicações clínicas, no intuito de contextualizar os médicos radiologistas no seu uso da prática diária.


EMBRIOLOGIA E ANATOMIA

O desenvolvimento do trato reprodutivo feminino envolve a diferenciação dos ductos de Müller, guiada pela ausência do hormônio antimülleriano e pela ação do estrogênio, resultando na formação do útero, tubas uterinas, colo uterino e parte superior da vagina(6,7). Esse processo ocorre em três etapas: a primeira etapa, de formação/desenvolvimento dos ductos, seguida de sua separação, fusão das porções inferiores para formar o útero, colo e porção superior da vagina, e reabsorção do septo uterovaginal, criando uma única cavidade uterina(8). Anomalias müllerianas ocorrem pela falha em alguma dessas etapas, podendo representar anomalias de desenvolvimento, fusão ou reabsorção, com manifestações como útero unicorno, bicorno ou septado(9). Anomalias de fusão e reabsorção também podem originar septos vaginais longitudinais ou transversos(2,10).


MÉTODOS DE IMAGEM

A histerossalpingografia, com quase um século de uso, é o método mais antigo para avaliar malformações uterinas. Permite examinar a cavidade uterina, o canal cervical e a permeabilidade tubária, mas não avalia o contorno externo do útero, as anomalias obstrutivas como corno uterino não comunicante, e tampouco examina alterações extrauterinas, incluindo ovários e trato urinário(8). A ultrassonografia bidimensional, amplamente disponível e de baixo custo, tem boa sensibilidade (90–92%) para detectar anomalias uterinas, sendo eficaz como ferramenta de triagem(11). Por meio desta, é possível identificar casos de agenesia uterina e duplicação da cavidade, desde que critérios de imagem bem definidos sejam seguidos para reduzir a variabilidade interobservador(12).

Tanto a ultrassonografia tridimensional quanto a ressonância magnética (RM) permitem aquisições volumétricas e geram imagens em qualquer plano, possibilitando a análise detalhada da cavidade uterina e do contorno externo, independentemente da posição do útero na pelve. A RM é considerada o padrãoouro para diagnóstico de malformações müllerianas, oferecendo maior independência do operador e facilidade para identificar anomalias associadas. Com a RM é possível caracterizar o contorno uterino, os óstios tubários e orifícios cervicais, o que permite um diagnóstico preciso(13). A RM é indicada para casos complexos, malformações associadas, endometriose profunda e histórico de cirurgias prévias ou traumas(2).


HISTÓRICO DAS CLASSIFICAÇÕES DE ANOMALIAS MÜLLERIANAS

Inicialmente, a classificação das anomalias müllerianas foi proposta por Eduard Kaufmann e posteriormente divulgada por Julius Jarcho em 1946(14), estabelecendo um marco inicial para o diagnóstico dessas condições. Avançando para 1988, a AFS publicou seu sistema abrangente, que estruturava as anomalias em sete classes distintas, dependendo do grau de desenvolvimento e fusão dos ductos de Müller (Figura 1). Essas classes incluíam desde agenesia mülleriana até úteros expostos ao dietilestilbestrol.





Classificação AFS de 1988

Classe I
– Agenesia ou hipoplasia, com subdivisões específicas para alterações vaginais, cervicais, fúndicas, tubárias ou combinadas.

Classe II – Útero unicorno, com variantes que abrangem desde cornos rudimentares comunicantes até a ausência completa de corno contralateral.

Classes III a VII – Variam de úteros didelfos a bicornos, septados e arqueados, até a exposição a substâncias teratogênicas como o dietilestilbestrol.

Esta classificação foi valorizada por sua simplicidade e eficácia em correlacionar as formas anatômicas com prognósticos clínicos de gravidez(15). No entanto, por ser uma das primeiras iniciativas para sistematizar a classificação das anomalias müllerianas, o uso da classificação da AFS revelou algumas limitações. As principais incluem: a subjetividade inerente à falta de critérios diagnósticos bem definidos; a dificuldade em categorizar anomalias envolvendo a vagina e o colo do útero; a limitação na classificação de anomalias complexas, deixada de forma individualizada e mais dependente do conhecimento heterogêneo da entidade e dos léxicos entre os diferentes profissionais(6).

Classificação ESHRE/ESGE de 2013

Em resposta às limitações da classificação da AFS, a ESHRE/ESGE introduziu um sistema mais detalhado em 2013, que não apenas abordava as anomalias uterinas, mas também incluía categorias específicas para anomalias cervicais e vaginais, com a finalidade de eliminar o diagnóstico subjetivo da classificação original da AFS, além de permitir a diferenciação entre útero septado e outras condições similares, independentemente dos critérios morfométricos absolutos.

Esta classificação baseia-se na anatomia pélvica e divide as classes principais conforme as alterações anatômicas derivadas da mesma origem embriológica, enquanto as subclasses são divididas a partir das variações anatômicas das classes principais. Já as anomalias cervicais e vaginais são classificadas em subclasses suplementares e independentes (Figuras 2 e 3)(5).









A classe U0 abrange casos com útero normal, definido pela linha interostial reta ou curva, com pequena invaginação miometrial fúndica, que não ultrapassa 50% da espessura da parede uterina. Esta classificação evita o uso de números absolutos, pois os autores acreditam que as dimensões uterinas e a espessura da parede uterina podem variar entre pacientes. Dessa forma, definiram a deformidade uterina com base em proporções anatômicas uterinas, como a espessura da parede uterina.

A classe U1 ou útero dismórfico engloba casos com contorno uterino externo normal, mas com forma anormal da cavidade uterina. Suas subclasses são: U1a (útero em forma de T), com cavidade uterina estreita decorrente de espessamento das paredes laterais, com a maior parte correspondendo ao corpo uterino e uma parte menor ao colo do útero; U1b (útero infantil), com cavidade uterina estreita sem espessamento das paredes laterais, com a maior parte correspondendo ao colo do útero e uma parte menor ao corpo uterino; U1c ou “outras”, que inclui as pequenas deformidades da cavidade uterina, incluindo as com pequena invaginação miometrial fúndica, que representa menos de 50% da espessura da parede uterina.

A classe U2, também chamada de útero septado, corresponde a uma anomalia em que a cavidade uterina apresenta invaginação miometrial ou fibrosa a partir do fundo uterino, atualmente descrita como septo, que excede 50% da espessura da parede uterina. Dependendo do grau de deformidade do corpo uterino, existem duas subclasses: U2a ou útero septado parcial, caracterizado pela presença de um septo que divide parcialmente a cavidade uterina, acima do nível do orifício cervical interno; U2b ou útero septado completo, caracterizado pela presença de um septo que divide completamente a cavidade uterina até o nível do orifício cervical interno. Pacientes com útero septado completo (classe U2b) podem apresentar ou não anomalias cervicais (como o útero com colo também septado) e/ou defeitos vaginais.

A classe U3, também chamada de útero bicorno, apresenta contorno anormal do fundo uterino, com uma indentação da serosa fúndica na linha média que excede 50% da espessura da parede uterina. Essa indentação pode dividir parcial ou completamente o corpo uterino, incluindo em alguns casos o colo do útero e/ou a vagina. As subclasses dessa categoria são: U3a (útero bicorno parcial), com indentação da serosa fúndica que divide parcialmente o corpo uterino acima do nível do colo do útero; U3b (útero bicorno completo), com indentação da serosa fúndica que divide completamente o corpo uterino até o nível do colo do útero; U3c (útero bicorno septado), caracterizado por defeito adicional de absorção, em que a espessura (profundidade) da indentação do fundo uterino excede 150% da espessura da parede uterina.

A classe U4 (útero unicorno) é uma anomalia em que o desenvolvimento uterino é unilateral, com a parte contralateral podendo estar incompletamente formada ou ausente. As suas subclasses são: U4a (útero unicorno com cavidade rudimentar funcional), que possui um corno contralateral funcional que pode ser comunicante ou não comunicante; U4b (útero unicorno sem cavidade rudimentar funcional), caracterizado pela presença de corno uterino contralateral não funcionante ou pela agenesia dessa parte contralateral.

A classe U5 (útero aplásico) é definida pela ausência de qualquer cavidade uterina completamente desenvolvida ou unilateral. Suas subclasses são: U5a, que corresponde ao útero aplásico com cavidade rudimentar (funcional), caracterizado pela presença de um corno funcional (bilateral ou unilateral); U5b, que corresponde ao útero aplásico sem cavidade rudimentar (funcional), com presença de remanescentes uterinos ou agenesia completa do útero.

Por fim, a classe U6 é reservada para casos ainda não classificados.

O sistema europeu também classifica anomalias cervicais e vaginais coexistentes em uma graduação de 0 a 4 (Figura 2). Os autores retiraram o termo “útero arqueado” da classificação, por considerá-lo confuso, sendo apontado que havia necessidade de ter definições mais claras. Assim, se decidiu que o útero septado deveria incluir apenas pacientes com invaginação miometrial fúndica na linha média de 50% da espessura da parede uterina. Uma nova subcategoria sob o termo geral “outros” foi adicionada à classe I/útero dismórfico, dando a oportunidade de incluir todas as deformidades menores da cavidade endometrial, incluindo invaginações miometriais do fundo uterino na linha média com 50% da espessura da parede uterina, deixando claro que o valor clínico desta variante necessitaria de pesquisas clínicas futuras(5).

Entre as limitações do uso da classificação europeia destaca-se a complexidade na sua aplicabilidade clínica, uma vez que depende da análise individual e pode haver variações na interpretação das anomalias entre diferentes profissionais. De acordo com Ludwin et al. (15), ao comparar a classificação ESHRE/ESGE e a classificação AFS, foi observado que a aplicação dos critérios ESHRE/ESGE pode causar um excesso de diagnóstico de útero septado, com um aumento em quase três vezes da frequência de seu reconhecimento, provavelmente relacionado ao ponto de corte utilizado, levando a tratamentos excessivos e desnecessários(15).

A classificação da AFS de 1988 e a da ESHRE/ESGE diferem principalmente em objetividade e detalhamento.

A classificação da AFS de 1988 se baseia em descrições anatômicas gerais e foi criticada pela subjetividade na interpretação das anomalias müllerianas. Enquanto a AFS é mais conservadora e focada em anomalias uterinas específicas, a ESHRE/ESGE introduz critérios mais claros e padronizados e amplia o escopo para incluir outras malformações do trato genital, mas com um custo potencial de diagnósticos excessivos e intervenções desnecessárias.

Comparação das classificações de anomalias müllerianas: AFS 1988 vs. ASRM 2021

A vasta gama de anomalias müllerianas, combinada com a raridade dessas condições e a ausência de critérios objetivos universais, continua a complicar sua identificação e tratamento(6). Uma classificação ideal facilitaria a identificação dessas anomalias, melhoraria a comunicação entre profissionais de saúde e, consequentemente, otimizaria o atendimento clínico prestado às mulheres afetadas. Nesse contexto, a necessidade de atualizar e refinar as classificações existentes levou à criação de uma nova classificação pela ASRM em 2021.

A ASRM convocou um grupo multidisciplinar, incluindo membros da própria ASRM, da Sociedade dos Cirurgiões Reprodutivos, da Sociedade Norte-Americana de Ginecologia Pediátrica e Adolescente, além de radiologistas especializados em diagnóstico por imagem de anomalias müllerianas. Este grupo realizou uma análise abrangente das classificações existentes, destacando seus méritos e deficiências.

A classificação de 1988 da AFS foi identificada como a mais prática e amplamente aceita em virtude da sua simplicidade e clareza visual(4). Apesar de seu escopo limitado, que não incluía todas as formas de anomalias nem incluía alterações cervicais e vaginais (eram descritas de forma adicional à malformação predominante do útero), optou- se por adotá-la como base para o novo sistema, em vez de desenvolver um completamente novo.

As categorias da AFS foram ampliadas para incluir três novas classes: septo vaginal longitudinal, septo vaginal transverso e anomalias complexas. As ilustrações foram modernizadas para manter a facilidade de reconhecimento, enquanto critérios diagnósticos mais precisos foram estabelecidos para distinguir, em particular, entre úteros bicornos e septados (Figuras 4 e 5). Foi ainda estabelecido um léxico consistente e compreensível, para facilitar a comunicação. Diferentemente da classificação AFS, as categorias de anomalias não são mais numeradas, mas sim identificadas por terminologia descritiva.









A nova classificação de anomalias müllerianas da ASRM de 2021 (MAC 2021) é dividida em nove categorias principais:

• Agenesia mülleriana (com ou sem remanescente uterino atrófico uni ou bilateral, com ou sem endométrio funcionante);
• Agenesia cervical;
• Útero unicorno (com ou sem hemiútero rudimentar contralateral, com ou sem endométrio funcionante);
• Útero didelfo (dois hemiúteros e colos não fusionados ou duplicados);
• Útero bicorno (corpos parcialmente fusionados – por indentação da serosa fúndica);
• Útero septado;
• Septo vaginal longitudinal;
• Septo vaginal transverso;
• Anomalias complexas.

Critérios específicos foram definidos para categorizar o útero septado, arqueado e bicorno. Modificações foram feitas a partir das diretrizes de 2016 da ASRM(7) para o útero septado, definindo-o agora como tendo um septo endometrial (invaginação miometrial ou fibrosa a partir do fundo uterino) com mais de 1 cm de comprimento, angulação inferior a 90°, e um contorno externo fúndico normal (Figura 6). O útero septado pode apresentar também septação do colo (útero septado completo), caracterizado por uma divisão contínua ou descontínua com o septo miometrial ou fibroso uterino, sem estroma circunferencial(6).





O útero arqueado era considerado uma variação do bicorno por Kauffman(14), e não um diagnóstico diferencial do espectro do útero septado. Entretanto, já era mencionado, na época, como possível variação do normal, mas com repercussão clínica indeterminada. Após o termo ter sido omitido pela classificação da ESHRE/ESGE de 2013, ele ressurge na nova classificação da ASRM de 2021, passando a ser caracterizado por um septo miometrial inferior a 1 cm, mantendo o contorno externo fúndico normal. Os autores afirmam que um útero arqueado tem um status clinicamente insignificante, sendo, portanto, considerado como variante da normalidade.

Já o útero bicorno foi definido como uma indentação da serosa fúndica (do contorno externo) maior que 1 cm, podendo ter também duplicação do colo, que pode estar parcialmente fusionado (com estroma separando os canais cervicais) ou com dois colos completamente separados (com estroma e miométrio independentes). Alguns úteros podem apresentar adenomiose ou mais estruturas vasculares ou conjuntivas entre os cornos do que miométrio, o que causa dúvida em alguns raros casos pela adoção de um critério único da serosa fúndica para diferenciar septado de bicorno. Estruturas conjuntivas referem-se a tecidos conjuntivos que podem estar presentes entre os cornos uterinos, contribuindo para a morfologia da cavidade uterina. O tecido conjuntivo é composto por uma matriz extracelular rica em colágeno e outras proteínas estruturais, além de células como fibroblastos e miofibroblastos. No contexto da diferenciação entre útero septado e bicorno, a predominância de tecido conjuntivo na região fúndica pode dificultar a classificação, já que se a área entre os cornos apresentar um predomínio de tecido conjuntivo e vascularização reduzida, pode se assemelhar a um septo fibroso.

A nova classificação permite ainda a comparação cruzada entre categorias para auxiliar na determinação diagnóstica e nas opções terapêuticas para casos complexos ou controversos (Figura 7).





Com essas alterações, a MAC 2021 atende o propósito de aproveitar a simplicidade, os pontos fortes e a fácil identificação da classificação AFS de 1988, ao mesmo tempo que amplia e atualiza o sistema para incluir anomalias cervicais e vaginais. Incorpora pilares ideológicos valiosos, destacando-se a escolha pela descrição em vez do sistema de numeração, o que permite uma identificação mais precisa e intuitiva das anomalias. Além disso, é desenhada para abranger anomalias complexas e diferentes estruturas anatômicas, o que ajuda a evitar o subdiagnóstico, especialmente em centros menos especializados(6).

Para facilitar a divulgação e entendimento da MAC 2021, a ASRM traz uma ferramenta online altamente completa e prática para o diagnóstico diferencial das anomalias, que pode ser facilmente consultada no site da ASRM. Essa ferramenta interativa apresenta, na página principal de cada classe, os termos descritores que facilitam a identificação das malformações. Além disso, inclui muitas variações possíveis de cada classe, tornando o processo de classificação e diagnóstico mais acessível e detalhado. A praticidade dessa ferramenta online permite aos profissionais de saúde uma navegação intuitiva, com informações padronizadas que simplificam a análise e promovem precisão no diagnóstico. Dessa forma, a MAC 2021 também visa aumentar a conscientização sobre a diversidade das anomalias müllerianas, padronizando a terminologia para facilitar a comunicação entre profissionais e apoiar pesquisas em bases de dados científicas, aprimorando a qualidade dos registros. Além disso, atua como uma ferramenta educativa, fornecendo informações sobre apresentação, diagnóstico e tratamento das anomalias, disponíveis online, sendo aplicável para profissionais de todos os níveis, incluindo estudantes e residentes, e promovendo o conhecimento e a defesa dos direitos dos pacientes.


DISCUSSÃO E PERSPECTIVAS FUTURAS

Apesar da elaboração de critérios diagnósticos bem definidos, alguns autores argumentam que os valores de cut-off estabelecidos pela MAC 2021 parecem ser arbitrários e não suportados por evidências científicas robustas, principalmente em relação às definições das anomalias mais comuns (arqueado, septado e bicorno)(16). Em certas circunstâncias, pode haver inclusive divergências entre esses critérios, resultando em um maior número de diagnósticos incertos. Por exemplo, a classificação não abrange casos em que o útero apresenta um ângulo de indentação interna inferior a 90°, mas com profundidade menor que 10 mm; da mesma forma, uma profundidade de indentação superior a 10 mm acompanhada de um ângulo amplo coloca a situação novamente em uma zona nebulosa entre as definições de útero arqueado e septado (Figura 8). Outra limitação consiste na reafirmação do amplo espectro de anomalias müllerianas, sugerindo que as categorias atuais podem não abranger todas as variantes existentes, o que indica a necessidade de futuras revisões e atualizações para acomodar novas descobertas, melhor entendê-las e, consequentemente, melhor tratá-las.





Essa foi uma importante contribuição da evolução das classificações ao longo dos anos, mantida na classificação mais recente: o conceito de continuidade no desenvolvimento. Além disso, reflete algo que se observa cada vez mais atualmente, em razão do avanço do conhecimento e/ou das técnicas de imagem, que é o “não cumprimento” da regra de desenvolvimento no sentido caudocranial (fusão e reabsorção das estruturas derivadas dos ductos müllerianos), o que gerava possíveis subdiagnósticos, especialmente em relação às anomalias de fusão cervicais e vaginais.

As classificações, em sua maioria, mantêm-se atreladas às estruturas anatômicas finais do trato genitourinário como principal critério de classificação. Talvez a origem embriológica das estruturas possa ser uma melhor referência, de maneira que diferentes estruturas possam estar em uma mesma classe. As anomalias associadas genitourinárias são avaliadas parcialmente em casos relatados na literatura atualmente, muito em decorrência da abordagem ou do fluxo diagnóstico.

O termo útero “em T” levava a um subdiagnóstico, sendo muito criticado pela classificação europeia. Foi sugerido o termo congênito, que é mais abrangente, que desta forma permite incluir possíveis novos diagnósticos a serem descritos na literatura. Da mesma forma, ganhou mais repercussão na literatura a discussão sobre ACUMs (sigla do inglês accessory cavitated uterine malformations, criada para malformações de cavidade uterina acessória). Essa é uma nova abordagem de achados que podem se assemelhar a uma adenomiose focal, mas que fogem um pouco da discussão desse texto.

A versão de 2021 da ASRM mantém um formato de fácil compreensão e oferece uma terminologia padronizada (Figura 9). Com essa linguagem comum e acessível, espera-se que essa classificação facilite a realização de estudos clínicos, essenciais para o progresso da pesquisa em saúde reprodutiva.





CONCLUSÃO

A evolução das classificações de anomalias müllerianas reflete um esforço contínuo para aprimorar a precisão diagnóstica e o manejo clínico dessas condições complexas. A transição da classificação da AFS, passando pela europeia e, para a mais recente da ASRM, exemplifica o progresso na compreensão das variações anatômicas do trato reprodutivo feminino e a necessidade de abordagens diagnósticas mais detalhadas e menos subjetivas. O radiologista que realiza exames de investigação para malformações uterinas precisa estar atento aos benefícios de cada uma, para adequadamente classificar os achados, entendendo que há variáveis nas classificações, e que é preciso facilitar o diagnóstico para orientar o médico solicitante a encontrar a melhor conduta a ser seguida.

A nova classificação não apenas ampliou as categorias de diagnóstico, mas também facilitou uma linguagem comum mais clara para os profissionais de saúde. Este avanço é vital para melhorar os resultados reprodutivos e a qualidade de vida das pacientes afetadas por essas anomalias.

Por fim, a flexibilidade da nova classificação para incorporar futuras descobertas destaca a importância de uma revisão contínua, assegurando que a classificação de anomalias müllerianas permaneça relevante e aplicável aos avanços científicos e clínicos.


REFERÊNCIAS

1. Chan YY, Jayaprakasan K, Zamora J, et al. The prevalence of congenital uterine anomalies in unselected and high-risk populations: a systematic review. Hum Reprod Update. 2011;17:761–71.

2. Sugi MD, Penna R, Jha P, et al. Müllerian duct anomalies: role in fertility and pregnancy. Radiographics. 2021;41:1857–75.

3. Buttram VC Jr, Gibbons WE. Müllerian anomalies: a proposed classification. (An analysis of 144 cases). Fertil Steril. 1979;32:40–6.

4. The American Fertility Society. The American Fertility Society classifications of adnexal adhesions, distal tubal occlusion, tubal occlusion secondary to tubal ligation, tubal pregnancies, müllerian anomalies and intrauterine adhesions. Fertil Steril. 1988;49:944–55.

5. Grimbizis GF, Gordts S, Di Spiezio Sardo A, et al. The ESHRE/ESGE consensus on the classification of female genital tract congenital anomalies. Hum Reprod. 2013;28:2032–44.

6. Pfeifer SM, Attaran M, Goldstein J, et al. ASRM müllerian anomaly classification 2021. Fertil Steril. 2021;116:1238–52.

7. Practice Committee of the American Society for Reproductive Medicine. Uterine septum: a guideline. Fertil Steril. 2016;106:530–40.

8. Robbins JB, Broadwell C, Chow LC, et al. Müllerian duct anomalies: embryological development, classification, and MRI assessment. J Magn Reson Imaging. 2015;41:1–12.

9. Behr SC, Courtier JL, Qayyum A. Imaging of müllerian duct anomalies. Radiographics. 2012;32:E233–50.

10. Li S, Qayyum A, Coakley FV, et al. Association of renal agenesis and müllerian duct anomalies. J Comput Assist Tomogr. 2000;24:829–34.

11. Bocca SM, Abuhamad AZ. Use of 3-dimensional sonography to assess uterine anomalies. J Ultrasound Med. 2013;32:1–6.

12. Berger A, Batzer F, Lev-Toaff A, et al. Diagnostic imaging modalities for Müllerian anomalies: the case for a new gold standard. J Minim Invasive Gynecol. 2014;21:335–45.

13. Olpin JD, Heilbrun M. Imaging of Müllerian duct anomalies. Clin Obstet Gynecol. 2009;52:40–56.

14. Jarcho J. Malformations of the uterus; review of the subject, including embryology, comparative anatomy, diagnosis and report of cases. Am J Surg. 1946;71:106–66.

15. Ludwin A, Ludwin I. Comparison of the ESHRE–ESGE and ASRM classifications of Müllerian duct anomalies in everyday practice. Hum Reprod. 2015;30:569–80.

16. Ludwin A, Tudorache S, Martins WP. ASRM Müllerian anomalies classification 2021: a critical review. Ultrasound Obstet Gynecol. 2022;60:7–21.



1. Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil
2. Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP), São Paulo, SP, Brasil
3. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

a. https://orcid.org/0000-0002-4634-8972
b. https://orcid.org/0009-0003-8171-4821
c. https://orcid.org/0000-0001-8578-3136
d. https://orcid.org/0009-0001-3578-8753

Correspondência:
Dr. Luís Ronan Marquez Ferreira de Souza
Avenida Claricinda Alves de Resende, 1650, C9Q9
Uberaba, MG, Brasil, 38081-793
E-mail: luisronan@gmail.com

Received in August 25 2024.
Accepted em February 28 2025.
Publish in May 14 2025.


Creative Commons License
This work is licensed under an Attribution 4.0 International License (CC BY 4.0), effective June 9, 2022. Previously, the journal was licensed under a Creative Commons Attribution - Non-Commercial - Share Alike 4.0 International License.

Site Map



  • SPONSORED BY

Av.Paulista, 37 - 7° andar - Conj. 71 - CEP 01311-902 - São Paulo - SP - Brazil - Phone: (11) 3372-4554 - Fax: (11) 3372-4554

© All rights reserved 2025 - Radiologia Brasileira