RESUMO
OBJETIVO: Apresentamos uma série de biópsias renais ambulatoriais utilizando o método tangencial, analisando a frequência de material suficiente e a segurança para o paciente.
MATERIAIS E MÉTODOS: Revimos os laudos anatomopatológicos e a evolução de 244 pacientes encaminhados para biópsia renal ecoguiada em um único centro, disparando a agulha logo abaixo da cápsula renal tangenciando o córtex. Os fragmentos foram examinados pelo patologista, que contou os glomérulos viáveis obtidos. Se necessárias, novas punções eram realizadas, desde que o paciente não apresentasse sangramento ao Doppler. O paciente permanecia em repouso na clínica e era liberado após revisão. Após uma semana, o paciente era contatado para investigação de eventos adversos tardios.
RESULTADOS: Dez pacientes foram excluídos da série, restando 234 para análise. Material suficiente para diagnóstico foi obtido em 95,73% dos casos, parcialmente adequado em 3,42% e pouco representativo em 0,85%. Dois pacientes (0,85%) apresentaram sangramento maior que 50 cm3 e foram encaminhados para serviço de pronto-atendimento hospitalar, e ambos tiveram evolução favorável: um permaneceu apenas em repouso e o outro necessitou de transfusão sanguínea, tendo alta após 48 horas.
CONCLUSÃO: A abordagem tangencial para biópsia renal, com suas altas taxas de segurança e eficácia, representa uma ferramenta diagnóstica confiável para doenças renais e sistêmicas e deve ser o método de escolha para obtenção de espécimes patológicos adequados.
Palavras-chave:
Biópsia guiada por imagem; Doenças renais; Pacientes ambulatoriais; Ultrassonografia intervencionista.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To present the results of a series of outpatient renal biopsies performed with a tangential approach, as well as to conduct an analysis focusing on patient safety and the frequency with which sufficient material was obtained.
MATERIALS AND METHODS: This retrospective observational study examined the pathology results and evolution of 244 patients referred for ultrasound-guided renal biopsy at a single center. In each biopsy, the needle was advanced in the cortex just below the renal capsule. The pathologist examined the fragments, counting the viable glomeruli obtained; additional punctures were performed if necessary, as long as Doppler ultrasound showed no bleeding. The patients remained at rest at the clinic, being discharged after a follow-up ultrasound evaluation and contacted one week later to investigate late adverse events.
RESULTS: Ten patients were excluded from the analysis, leaving a sample of 234 patients. The material obtained for diagnosis was considered sufficient in 95.73% of the procedures, partially adequate in 3.42%, and not very representative in 0.85%. Two patients (0.85%) had bleeding greater than 50 cm3 and were referred to the hospital emergency department. Both of those patients had a favorable evolution: one required only a period at rest, and the other required a blood transfusion, being discharged 48 h after the procedure.
CONCLUSION: The tangential approach to renal biopsy, with its high rates of safety and efficacy, representing a reliable diagnostic tool for renal and systemic diseases, should be the method of choice for obtaining adequate pathological specimens.
Keywords:
Image-guided biopsy; Kidney diseases; Ambulatory care; Ultrasonography, interventional.
INTRODUÇÃO
Diversas doenças renais, em especial as síndromes nefrótica e nefrítica e a piora da função renal tanto dos rins primitivos quanto transplantados, necessitam de avaliação histopatológica do parênquima para o diagnóstico etiológico e tratamento adequado. A biópsia renal também é bastante útil na avaliação de doenças sistêmicas com acometimento renal, como o diabetes mellitus, as colagenoses e amiloidoses, tendo se tornado instrumento indispensável não só para o diagnóstico, como para definição de tratamento e prognóstico(1). O objetivo da biópsia renal nas doenças parenquimatosas renais – glomerulonefrites, disfunção renal, avaliação de enxerto renal, etc. – é obter pelo menos 20 glomérulos para o estudo com microscopia óptica e imunofluorescência e pelo menos um glomérulo para o estudo de microscopia eletrônica, quando esta for necessária.
A associação de métodos de imagem na execução de biópsia renal permitiu obter amostras melhores com maior segurança, destacando-se a ultrassonografia (US) por visibilizar o procedimento em tempo real, sem uso de radiação e sem empregar contrastes potencialmente nefrotóxicos, podendo ser realizada ambulatorialmente(2). Além da imagem anatômica, a US permite utilizar o Doppler colorido para localização de vasos em tempo real, não só evitando punções inadvertidas, como demonstrando sangramento ativo após a passagem da agulha.
O desenvolvimento de dispositivos automáticos e semiautomáticos com agulhas do tipo tru-cut melhorou a qualidade do material obtido, bem como a segurança. Nesses dispositivos, o avanço da agulha é padronizado (em geral, de 1,5 a 2,2 cm), permitindo ao médico calcular a trajetória da agulha, evitando a punção de artérias mostradas pelo Doppler colorido(3).
Apresentamos os resultados obtidos nas biópsias renais ecoguiadas em um único centro privado brasileiro, por equipe composta por radiologistas e patologistas. Estes últimos avaliam o fragmento a fresco por microscopia óptica, fazendo a contagem dos glomérulos e orientando o ultrassonografista quanto à necessidade de novas punções. Essa avaliação imediata permitiu aprimorarmos a técnica, obtendo mais glomérulos por passagem, praticamente eliminando laudos inconclusivos devidos a material insuficiente, bem como oferecendo maior segurança para os clientes, graças ao baixíssimo índice de eventos adversos. Posteriormente, revendo a literatura, descobrimos que a técnica que estávamos usando era chamada de tangencial ou cortical tangencial, existindo relativamente poucos artigos a descrevendo, nenhum em português, o que nos motivou a fazer este estudo(4–8). No presente artigo, não iremos abordar a biópsia de lesões focais renais.
O propósito do estudo é relatar a técnica da biópsia cortical renal percutânea ecoguiada pelo método tangencial e os resultados encontrados, em especial a qualidade do material obtido, com base na contagem do número de glomérulos, no porcentual de amostras suficientes e na frequência dos eventos adversos.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo observacional retrospectivo, com base em revisão de todas as biópsias renais consecutivas realizadas em clínica privada de Belo Horizonte, MG, ao longo de 2023. Os pacientes foram encaminhados por diversos nefrologistas do Estado de Minas Gerais, a maioria da região metropolitana de Belo Horizonte. Para efetivar a marcação, o paciente apresentava pedido médico com justificativa e exames laboratoriais recentes, dos últimos 40 dias, incluindo coagulograma, ureia e creatinina, urina rotina, bacterioscopia urinária ou urocultura. Foram aceitos para biópsia os pacientes com razão normalizada internacional (RNI) até 1,5, tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPA) até 10 s acima do controle, contagem de plaquetas maior que 50.000/mm3, sem bacilos Gram-negativos na bacterioscopia ou com urocultura sem bactérias Gram-negativas ou com menos de 100.000 colônias(3). Pacientes já em tratamento de infecção urinária eram aceitos. Pacientes com distúrbios de coagulação eram aceitos após correção da alteração por hematologista. Para os pacientes em uso de anticoagulantes ou antiplaquetários exigia-se termo de suspensão desses medicamentos assinado pelo médico solicitante ou por hematologista, bem como confirmação verbal da interrupção do uso antes da biópsia. Foi solicitado envio de exame de imagem renal, recusando pacientes com indício de significativa atrofia renal bilateral.
Antes da biópsia, os pacientes assinaram termo de consentimento informado, constando a descrição do procedimento e eventuais eventos adversos, sendo esclarecidas eventuais dúvidas. Media-se a pressão arterial, e caso a pressão diastólica estivesse acima de 110 mmHg o paciente era encaminhado para sala anexa, onde permanecia em repouso num ambiente tranquilo. Se a pressão arterial diastólica reduzisse para 110 mmHg ou menos, realizava- se biópsia; caso contrário, o paciente era encaminhado ao médico assistente solicitando ajuste da dose de anti- hipertensivo.
As biópsias foram realizadas no período da manhã em sala dotada de equipamento ultrassonográfico GE Logiq E9 (GE HealthCare, Milwaukee, WI, EUA) ou Canon Aplio A (Canon Medical Systems, Otawara, Japão), dotados de Doppler colorido convencional e microvascular, bem como de imagem de contraste por microbolhas, e conduzidas por dois médicos – o que opera o aparelho à esquerda da mesa de exame e o que manipula a agulha posicionado à direita da maca e em frente do monitor do ecógrafo.
No dia do exame, realizava-se avaliação ultrassonográfica dos rins, e pacientes com aspecto atrófico e volume renal reduzido bilateralmente (menor que 70 a 80 cm3 conforme o biótipo) eram rejeitados. Demos preferência para a biópsia do terço médio ou médio-inferior do rim esquerdo quando os dois rins tinham aspecto normal; o rim direito foi puncionado quando o rim esquerdo apresentava redução de volume, má visibilização ecográfica ou aspecto sugestivo de doença crônica mais avançada que a do rim direito. O paciente era posicionado na mesa de exame em decúbito ventral ou, no caso de pacientes obesos, em decúbito lateral direito, o qual permite janela adequada para a biópsia do rim esquerdo. Não realizamos sedação ou anestesia geral.
Após antissepsia com clorexidina com tensoativos a 2%, realizava-se anestesia ecoguiada com 19 mL de lidocaína a 1% sem vasoconstritor, adicionada com 1 mL de bicarbonado de sódio a 8,4%, do ponto de entrada da agulha na pele até o local escolhido junto à cápsula renal, em geral no terço médio ou médio-inferior do rim. Em seguida, procedia-se à punção com agulha tru-cut 16G × 16 cm ou 20 cm montada em dispositivo automático de disparo (Bard Magnum, Covington, GA, EUA), com 22 mm de avanço programado. A penetração da agulha de biópsia é acompanhada pela US em tempo real, visibilizando o rim em corte transversal, evitando cicatrizes ou região próxima a cistos renais. Após a ponta da agulha ter perfurado a cápsula, a agulha era posicionada de modo que o avanço se desse na região imediatamente abaixo da cápsula – método tangencial – (Figura 1). Após o disparo e retirada da agulha, o local puncionado era examinado por US com Doppler colorido, com escala entre 9 e 12 cm/s, à procura de sinais de sangramento ativo(9). Caso não fosse detectado sangramento, realizava-se outra punção.

Após duas punções, os fragmentos obtidos eram examinados a fresco em microscópio óptico pelo patologista na sala de biópsia, contando os glomérulos não esclerosados – que, por conterem hemácias, aparecem como pontos avermelhados, enquanto os esclerosados não contêm hemácias –, informando aos médicos ultrassonografistas se o material era adequado para o exame anatomopatológico, englobando histopatologia convencional, imunofluorescência e microscopia eletrônica, as quais, em conjunto, exigem a análise de pelo menos 20 glomérulos (Figura 2). Se necessário, realizavam-se novas punções até se atingir este número ou se observar sangramento no trajeto da agulha ao Doppler. O próprio patologista seccionava os espécimes e os acondicionava nos frascos com meios específicos de conservação.

Encerrado o procedimento, o paciente era encaminhado à sala de repouso, onde permanecia em decúbito lateral direito ou esquerdo sobre coxim, conforme o rim primitivo puncionado, ou decúbito ventral no caso de rim transplantado, entre 1 e 5 horas, dependendo da ausência de sangramento após a biópsia, e reavaliado ao fim deste período pela US. Pacientes sem queixas e sem indício de sangramento significativo à US e ao Doppler eram então liberados, levando relatório do procedimento e o pedido de exame anatomopatológico com identificação do paciente, sexo, idade, dados do coagulograma, função renal, motivo da biópsia, rim puncionado, número de fragmentos obtidos, número do frasco contendo o material e possíveis eventos adversos.
Se fosse detectado sangramento ativo ao Doppler colorido por mais de cinco minutos, formação de coleção perinefrética entre 50 e 100 cm³ ou redução significativa da pressão arterial em relação ao valor basal, o paciente era encaminhado ao pronto-atendimento hospitalar após obtenção de acesso venoso e início da reposição de volume. Desmopressina, na dose de 0,3 µg/kg de peso diluído em 50 a 100 mL de solução salina, era administrada por via intravenosa aos pacientes com presença de sangramento e com ureia > 100 mg/dL (16,65 mmol/L) e/ou creatinina > 1,5 mg/dL (0,133 mmol/L) no sangue.
Rotineiramente, contatava-se o paciente ou familiar após uma semana para investigar evolução e rastrear possíveis eventos adversos tardios, os quais foram classificados em leves, moderados e graves conforme o tempo e recursos necessários para sua correção
(10).
RESULTADOSForam realizadas biópsias renais em 244 pacientes, de janeiro a dezembro de 2023, dos quais 10 foram excluídos – oito não apresentavam a quantidade de glomérulos descrita no laudo anatomopatológico; em um a biópsia foi de nódulo renal; dois pacientes não foram encontrados no cadastro do Instituto de Nefropatologia.
Os dados demográficos, do exame físico, dos exames laboratoriais e dados relativos à biópsia (rim puncionado, número de passagens da agulha, qualidade do material, pacientes liberados após o procedimento e pacientes encaminhados para pronto-atendimento hospitalar) estão listados na Tabela 1. A Tabela 2 relaciona as indicações para biópsia renal e a Tabela 3 lista os diagnósticos anatomopatológicos, o número total de glomérulos obtidos e a porcentagem de glomérulos esclerosados.
O material foi considerado suficiente para conclusão diagnóstica em 230 de 234 biópsias renais (98,3%). Os resultados inconclusivos se deveram a negatividade na avaliação pela imunofluorescência em quatro casos, dos quais em três não se observaram alterações relevantes na microscopia óptica, e em um caso observou-se esclerose em 42% dos glomérulos associada a retrações de tufos glomerulares, dilatação da cápsula de Bowman e atrofia do epitélio tubular com discreta fibrose intersticial, achados estes considerados inespecíficos.
Em dois casos (0,85% da série) ocorreu sangramento sintomático no controle após duas horas, os quais foram transferidos para o pronto-atendimento hospitalar. Um dos pacientes era do sexo feminino, 43 anos de idade, com indicação de biópsia por suspeita de nefrite lúpica, apresentando os seguintes exames laboratoriais: RNI: 1,08; TTPA: paciente 33 s/controle 33 s; plaquetas: 215.000 mm³; ureia: 88 mg/dL (14,65 mmol/L); creatinina: 3,08 mg/dL (0,273 mmol/L); pressão arterial na admissão: 140 × 90 mmHg; frequência cardíaca: 92 bpm. Foi puncionado o rim esquerdo, colhidos dois fragmentos, obtidos 15 glomérulos, nove deles esclerosados, amostra adequada e com resultado do histopatológico de nefropatia por IgA (Berger). A paciente foi transferida para o pronto-atendimento hospitalar e quatro horas após a admissão foi realizada tomografia computadorizada (TC) do abdome, que revelou aumento de 10 cm
3 do volume do hematoma perirrenal. Em razão das hemácias baixas, foi necessária transfusão de sangue (hemograma pré-exame indicando leve anemia). Não foi necessária nenhuma intervenção cirúrgica e a paciente manteve-se estável hemodinamicamente durante toda a internação. Nova TC no dia seguinte mostrou discreto aumento do volume do hematoma perirrenal (cerca de 10 mL). A paciente teve alta no terceiro dia após admissão, com TC estável em relação ao exame anterior, tendo evoluído sem intercorrências.
O outro paciente era do sexo masculino, 34 anos de idade, com indicação de biópsia por diabetes mellitus tipo I com piora progressiva da função renal e síndrome nefrótica, apresentando os seguintes exames laboratoriais: RNI: 1,0; TTPA: paciente 28 s/controle 33,0 s; plaquetas: 228.000 mm³; ureia: 109,0 mg/dL (18,15 mmol/L); creatinina: 3,03 mg/dL (0,268 mmol/L); proteinúria: 13,9 g em 24 h; pressão arterial: 150 × 90 mmHg; frequência cardíaca: 73 bpm. Foi puncionado o rim esquerdo, colhidos dois fragmentos, obtidos 43 glomérulos, dos quais 16 esclerosados, amostra adequada e com resultado histopatológico compatível com nefropatia diabética. O paciente relatou queixa de dor intensa após 15 minutos da realização do procedimento. Foi realizada nova avaliação ecográfica, que revelou coleção perirrenal com volume estimado em 80 cm³, sem sinais de refluxo sanguíneo significativo ao Doppler. Foram administradas seis ampolas de desmopressina, além de 1 g de dipirona intravenosa, sem melhora significativa. Foi administrada uma ampola de cloridrato de tramadol 50 mg, mas o paciente continuou se queixando de dor intensa. Nosso diagnóstico foi de cólica renal por distensão da cápsula pelo hematoma. Novo controle ultrassonográfico realizado após 90 minutos demonstrou estabilidade da coleção, mantendo volume estimado em 80 cm³. Mesmo hemodinamicamente estável, mas por causa da forte dor, o paciente foi transferido para o pronto-atendimento hospitalar, onde foi realizada TC que mostrou hematoma controlado. O paciente foi medicado e recebeu alta no mesmo dia à noite, sem dor.
DISCUSSÃOA biópsia renal desempenha um papel crucial no diagnóstico de doenças parenquimatosas renais, sendo considerada o padrão ouro para identificação, estadiamento e prognóstico dessas condições. Ela é particularmente valiosa em casos de proteinúria de faixa nefrótica, bem como em pacientes com proteinúria subnefrótica, que apresentam um risco substancial de progressão para doença renal em estágio terminal e morte, tornando a precisão diagnóstica essencial para guiar o tratamento personalizado
(11,12). No contexto de doenças sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico, a biópsia renal é fundamental para confirmar o diagnóstico de nefrite lúpica e avaliar características de atividade e cronicidade que informam decisões de tratamento e prognóstico
(13). A biópsia renal também é importante em pacientes com diabetes mellitus tipo 2, ajudando a diferenciar entre nefropatia diabética e outras doenças renais não diabéticas que podem exigir tratamentos específicos
(14). A biópsia renal também é útil na classificação de doenças glomerulares, como a nefropatia por IgA e a vasculite associada aos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, permitindo prever a progressão da doença renal crônica e a resposta à terapia. Portanto, a biópsia renal continua a ser uma ferramenta diagnóstica essencial na prática nefrológica, fornecendo informações críticas que podem alterar significativamente o manejo clínico e o prognóstico dos pacientes com doenças renais parenquimatosas
(11,15,16).
O número de glomérulos obtidos na biópsia é fundamental na avaliação da qualidade do material obtido e na confiabilidade do diagnóstico de nefropatias parenquimatosas primárias e secundárias. Tanto hematúrias com codócitos (hemácias dismórficas) quanto a maioria das proteinúrias decorrem de lesão glomerular. Para ter valor, devem-se analisar idealmente 10 glomérulos pela coloração hematoxilina- eosina na microscopia óptica e 10 na pesquisa de depósito de imunoglobulinas e complemento pela imunofluorescência. O número mínimo de glomérulos aumenta nas síndromes nefróticas, que exigem pelo menos 20 glomérulos não esclerosados para análise adequada. Os glomérulos podem ser avaliados a fresco pela microscopia óptica convencional logo após a coleta, sendo vistos como pequenas formações arredondadas avermelhadas (quando contêm hemácias) ou brancacentas (quando preenchidas por proteínas ou outras substâncias). Apesar dessa avaliação eventualmente falhar, é a técnica mais difundida e utilizada.
Observamos prevalência relativamente alta de glomérulos esclerosados no material obtido em nossa série, o que atribuímos tanto à possibilidade de os nefrologistas se sentirem mais seguros em indicar a biópsia renal ecoguiada em casos mais complexos e/ou avançados (em razão do histórico de baixa incidência de eventos adversos significativos pela nossa equipe) quanto à dificuldade de acesso a atendimento por especialistas/nefrologistas por fatores socioeconômicos ou geográficos.
A US vem sendo utilizada desde a década de 1970 para guiar biópsias viscerais, resultando em maior segurança e obtenção de espécimes melhores para análise. Os autores têm experiência com biópsias ecoguiadas desde 1988
(3). Já se demonstrou que a experiência tem efeito benéfico na qualidade do material
(2).
Desde 2013, o patologista acompanha as biópsias renais ecoguiadas realizadas pela equipe radiológica em nosso serviço, examinando os espécimes obtidos a fresco logo após a biópsia, contando os glomérulos e orientando quanto à necessidade ou não de mais material. Nesse processo, gradualmente compreendemos que o material com maior quantidade de glomérulos era obtido quando a agulha era direcionada para a região subcapsular imediatamente abaixo da superfície renal, que corresponde ao córtex renal. Na literatura, esse método é chamado de técnica cortical tangencial
(4–8,17), a qual vem sendo progressivamente adotada em diversos centros por ter-se mostrado mais eficaz em relação ao procedimento convencional para obtenção de amostras renais adequadas. O número de glomérulos obtidos por Patel et al.
(8) em rins transplantados (21,7 ± 10,1) se aproxima do nosso (28,6). Também observamos que as agulhas tru-cut 16G são as que resultam em melhores espécimes com elevada segurança
(18). Os espécimes obtidos na punção com agulha 18G são mais finos, com menos glomérulos, aumentando a quantidade de passagens necessárias para se obter material suficiente. Já as agulhas com calibre 14G são mais grossas, acarretando maior risco de sangramento por lesão inadvertida de artéria arqueada ou interlobar.
O uso da imagem ultrassonográfica em tempo real, associada ao Doppler colorido, é fundamental para melhorar a segurança e eficácia da biópsia desde que o examinador tenha experiência no método
(19). Entretanto, o uso da US por si só não é suficiente para evitar por completo os eventos adversos hemorrágicos se a agulha não for direcionada para o córtex renal. Caso o disparo seja realizado para a porção mais central do rim, corre-se o risco de lesionar artérias interlobares ou segmentares, aumentando substancialmente o risco de hemorragia grave, que chega a 40% em algumas séries, em especial quando a TC é utilizada para guiar a biópsia
(20,21).
Chama a atenção a baixa ocorrência de eventos adversos significativos em nossa série de casos, associada à alta qualidade do material obtido pela biópsia ecoguiada. Sangramento significativo ocorreu em apenas dois pacientes (0,85%), sendo manejado conservadoramente em um (classificado como agudo leve) e com transfusão sanguínea em outro (classificado como agudo moderado)
(22), sem necessidade de intervenção radiológica ou cirúrgica. Não ocorreram eventos adversos tardios até uma semana após a biópsia, o que é importante quando a biópsia é ambulatorial. A frequência de eventos adversos de nossa série é menor que a encontrada em metanálise publicada em 2020
(23) abrangendo 87 manuscritos e 118.064 biópsias de parênquima renal guiadas por imagem, que relatou 11% de hematomas, 4,3% de dor local, 1,6% de sangramento necessitando de transfusão, 0,3% de sangramento necessitando de intervenção radiológica ou cirúrgica e 0,06% de mortalidade. Os autores do trabalho supracitado observaram que eventos adversos mais significativos ocorreram entre pacientes internados e em casos urgentes. Alguns pacientes de nossa série estavam internados, tendo se deslocado até a clínica para o procedimento, mas a biópsia foi eletiva na maioria dos casos. Pacientes com creatinina elevada, em geral maior que 5 mg/dL (0,442 mmol/L), ou ureia maior que 100 mg/dL (16,65 mmol/L) constituem outro grupo com maior preocupação por causa do risco hemorrágico associado a disfunção plaquetária; porém, em nossa série, não encontramos maior frequência de eventos adversos nesses pacientes.
Nosso estudo apresenta limitações, destacando-se a ausência de grupo controle de pacientes submetidos a biópsia renal perpendicular, método que utilizávamos até migrarmos para a técnica tangencial. Entretanto, naquela época utilizávamos agulhas 18G em razão do maior risco hemorrágico. Já na técnica tangencial o disparo da agulha é feito apenas no córtex, em região sem vasos calibrosos (identificáveis no Doppler), que nos dá maior segurança no uso da agulha mais calibrosa 16G, o que dificulta a comparação entre os métodos. Assim sendo, optamos por relatar apenas os resultados da técnica tangencial neste trabalho, reconhecendo que a demonstração cabal da superioridade de uma técnica sobre a outra exigiria estudo prospectivo randomizado, mas o baixíssimo índice de complicações da técnica tangencial torna tal estudo eticamente controverso. A maioria dos artigos utilizando a técnica convencional sugere acompanhamento imediato dos pacientes por até 4 horas; eventos adversos após 24 horas são infrequentes. Não encontramos complicações no prazo de uma semana após a biópsia, nem tivemos notícia de eventos adversos mais tardios pelos pacientes ou médicos solicitantes; entretanto, não foi realizada busca ativa, o que pode ser considerada limitação de nosso estudo.
Outra limitação de nosso estudo está na população estudada, composta de pacientes eletivos atendidos em clínica privada. Embora alguns tenham sido encaminhados por prefeituras (pelo Sistema Único da Saúde), a maioria conta com plano de saúde ou condições de pagar pela biópsia e pelo exame anatomopatológico. Entretanto, alguns dos autores trabalham em hospital público, onde praticam o mesmo método de biópsia, com a diferença que nem sempre o patologista está presente na sala durante a punção, motivo pelo qual não incluímos estes pacientes nesta série, de forma a torná-la mais homogênea. Outro possível viés de seleção está na exigência de ausência de distúrbios de coagulação para efetuar a biópsia, ou sua correção prévia, prática esta presente em todos os artigos que lemos. Como a biópsia é um procedimento em geral eletivo, é possível e desejável corrigir qualquer distúrbio hemorrágico antes de se realizá-la. Entretanto, não analisamos tal subgrupo de forma distinta, o que poderá ser feito em estudo prospectivo. Finalmente, para validação de nossos resultados, sugerimos estudo multicêntrico prospectivo envolvendo diversas populações e médicos, obedecendo ao mesmo protocolo de exame, laudo e busca ativa de eventos adversos.
Concluindo, quando indicada e realizada adequadamente, a biópsia renal percutânea traduz-se em método diagnóstico seguro e eficaz no diagnóstico das nefropatias parenquimatosas, bem como das doenças sistêmicas com acometimento renal, devendo-se utilizar preferencialmente a técnica cortical tangencial, em virtude da segurança e dos ótimos espécimes obtidos, mesmo na presença de disfunção renal e esclerose glomerular significativa.
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Clínica CEU Diagnósticos, Belo Horizonte, MG, Brasil
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https://orcid.org/0009-0002-7426-2081 d.
https://orcid.org/0009-0001-0624-5776 e.
https://orcid.org/0009-0001-7773-2643 f.
https://orcid.org/0009-0007-6171-3732 g.
https://orcid.org/0000-0003-1201-9449 h.
https://orcid.org/0000-0001-9996-4405Correspondência: Dr. Rogério Augusto Pinto-Silva
Avenida Francisco Sales, 1656, Santa Efigênia
Belo Horizonte, MG, Brasil, 30150-224
E-mail:
ecosala1@gmail.com
Received in
December 4 2024.
Accepted em
March 24 2025.
Publish in
June 11 2025.