ARTIGO ORIGINAL
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Autho(rs): Carlos Eduardo Affonso Grinbaum, Antonio Vitor de Abreu, Rodrigo Oliveira Carvalho de Aguiar, Emerson Leandro Gasparetto, Hilton Augusto Koch |
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Descritores: Fibular longo, Os peroneum, Sesamoide |
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Resumo: VDoutor, Professor Titular do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
INTRODUÇÃO O músculo fibular longo origina-se da cabeça e dos dois terços superiores da superfície lateral do corpo da fíbula e insere-se na face lateral da base do primeiro metatarsal e do primeiro cuneiforme, na região do médio-pé(1). O músculo fibular longo participa na flexão plantar do primeiro raio, pronação e eversão do antepé, e age como um flexor plantar secundário do tornozelo(2). Seu tendão origina-se no terço inferior da perna, na região póstero-lateral do tornozelo, e descreve três curvas ao redor de proeminências ósseas durante o seu caminho para o pé: a primeira no tornozelo, posterior ao maléolo lateral e ao tendão do músculo fibular curto; a segunda no calcâneo, ao redor do tubérculo fibular; e a terceira, inferiormente ao osso cuboide. Esta última é mais angulada, com aproximadamente 90 graus, mudando o seu curso da direção vertical para horizontal(3). Estudos demonstraram que tendões que mudam a sua trajetória estão mais sujeitos a danos, portanto, adaptações morfológicas são importantes para o segmento corporal poder suportar as forças de compressão e tensão geradas nessas áreas(4,5), como acontece na curvatura mais distal do fibular longo. Outro artigo descreve até a existência de uma articulação sinovial incompleta (sem disco) nesta região, chamada articulação fibulocuboide, que se encontra separada da bainha tendínea do fibular longo(6). Além disso, é descrita a presença de tecido fibrocartilaginoso no interior desta porção do tendão, também podendo ocorrer a presença de um osso supranumerário intratendíneo, o os peroneum (3,4,7). A função e a origem deste ossículo são bastante controvertidas, assim como sua incidência, variando entre 2,3% e 90% em vários estudos da literatura(2-9). Uma pesquisa sobre anatomia antropológica propõe que este ossículo seja remanescente de outros primatas e está perdendo sua função em humanos, devido à postura bipodal(10). Enquanto isso, alguns trabalhos correlacionam este osso com um aumento nas afecções próprias do tendão(11-13). Em razão disso, acreditamos que um melhor entendimento desta porção tendínea do fibular longo se faz necessário. Os objetivos deste artigo são relatar os aspectos morfológicos e avaliar radiograficamente o segmento do tendão do músculo fibular longo que está em contato com a superfície óssea do cuboide, em cadáveres, com o intuito de relatar a incidência do ossículo fibular, utilizando em alguns casos análise histológica.
MATERIAIS E MÉTODOS Cinquenta fragmentos tendinosos, com aproximadamente 5 cm de comprimento, da região fibulocuboidea foram coletados de 50 pés de cadáveres (48 homens e 2 mulheres), com idade de óbito entre 20 e 70 anos. Os espécimes foram fixados em solução de formalina 10%. Foram excluídos do estudo os tendões que apresentavam rotura ou degeneração, com afilamento de mais de 50% de seu calibre na inspeção macroscópica. A pesquisa foi realizada de acordo com o Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. Estudo radiográfico foi realizado para análise da existência do ossículo no interior do referido segmento tendinoso. Os tendões foram agrupados em filme de raios X, com a superfície em contato com o cuboide orientada para cima. O tubo de raios X foi posicionado a um metro do filme, onde as radiografias foram realizadas. Com este resultado, os tendões foram divididos em três grupos: 1) tendões com ossículo fibular; 2) tendões sem ossículo fibular; 3) casos duvidosos quanto à presença do ossículo no interior do tendão, onde se observava aumento da densidade pouco definida, sem evidência franca de ossificação. Todos os tendões foram avaliados também macroscopicamente, a partir de uma secção longitudinal, ao longo de todo seu o comprimento. Nos casos duvidosos em relação à existência de ossificação, foi feito estudo microscópico, com hematoxilina-eosina, e tais casos foram avaliados com aumentos de 16, 63 e 120 vezes. A morfologia e as características macro e microscópicas foram analisadas e reportadas em relação ao estudo radiográfico inicial. Análise microscópica paralela também foi realizada, em um tendão que continha o ossículo fibular, para ilustrar esta relação fibulocuboidea (ver Figura 3).
RESULTADOS Os segmentos tendinosos retirados possuíam morfologia macroscópica fusiforme plana, com superfície côncava no lado interno e convexa no lado externo. Outra característica morfológica observada em todos os fragmentos foi uma dilatação tendínea, exatamente em sua passagem pelo sulco do osso cuboide, que media em média 3 cm no comprimento, 2 cm na largura e 1 cm na espessura (Figura 1). Radiograficamente, foi demonstrado o ossículo em 13 tendões (26% - grupo 1), ausência de ossificação em 29 tendões (58% - grupo 2) e casos duvidosos em 8 tendões (16% - grupo 3) (Figura 2). Depois da secção longitudinal macroscópica em todos os grupos, foram confirmados os resultados da análise prévia feita pela radiografia nos grupos 1 e 2. Entretanto, no grupo 3, foram demonstradas a ausência de ossificação em cinco casos e a presença de ossículo em apenas um caso. Em dois tendões a dúvida permaneceu, sendo realizada a análise microscópica, que não demonstrou ossificação nestes casos. O resultado final do estudo demonstrou a presença do ossículo fibular em 14 tendões (28%). Em 36 tendões (72%) não foi possível visualizar o osso acessório. Durante o estudo histológico dos dois tendões duvidosos e do outro segmento com ossículo acessório, identificamos a presença de tecido fibrocartilaginoso no segmento. Foram observados, também, condrócitos e matriz fundamental associada com fibras colágenas (Figura 3). Os cotos distal e proximal dos tendões mostraram características microscópicas típicas de tecido tendíneo, mas na superfície interna do tendão foi demonstrada cartilagem hialina à histologia.
DISCUSSÃO O tendão fibular longo está exposto a trauma e degeneração, especialmente na região onde se curva ao redor do osso cuboide(14,15). Adaptações anatômicas nestas áreas são importantes para reduzir o atrito e suportar forças compressivas e tensionais(4), como a formação de uma área focal fibrocartilaginosa(16). Forças compressivas podem ser responsáveis por este tipo de diferenciação tecidual, substituindo o tecido tendíneo normal por fibrocartilagem, com produção de proteoglicanos que retêm água, aumentando a resistência do tendão contra forças externas. Algumas pesquisas têm demonstrado que a composição do tendão é variável na área onde mudanças de direção são feitas, especialmente ao redor de estruturas ósseas, em particular no tendão do fibular longo ao redor do cuboide(4,5). Esta diferenciação fibrocartilaginosa e forças mecânicas podem predispor à ossificação e, conseqüentemente, ossículo fibular(17). Estudos sobre o ossículo fibular não são recentes, definindo esta condição no tendão do fibular longo como sendo um osso do tipo sesamoide(18). Um estudo morfológico demonstrou a existência de tecido fibrocartilaginoso no tendão fibular em contato com o cuboide, que pode ossificar e se transformar em um ossículo(19). Testut e Latarget(16) também se referem sobre esta estrutura fibrocartilaginosa, suscetível à ossificação. A incidência de ossículo fibular é variável, desde 8,5% a 26% em pesquisas anatômicas(8,20) e de 2,3% a 9% em estudos radiológicos(7,8). De fato, parte da diferença entre a incidência de ossículo fibular em estudos radiológicos e morfológicos pode ser explicada em decorrência de súbitas calcificações, não identificadas pela radiografia, ou de exposição subótima, sem a inclusão da incidência oblíqua em vez da dorsoplantar(7). Oyedele et al. demonstraram a incidência desse ossículo em 90% dos espécimes sul-africanos, por intermédio de dissecação cadavérica, sugerindo que fatores ambientais e étnicos podem influenciar na sua incidência(9). Muitos autores concordam que a presença do osso fibular não é realmente uma vantagem mecânica, podendo ainda predispor o tendão a lesões(11-13,21-24). O ossículo fibular pode aparecer em consequência de intenso atrito do tendão contra o osso cuboide, induzindo à ossificação do tecido fibrocartilaginoso. Um estudo comparativo especulou que este ossículo é uma estrutura que está desaparecendo em humanos, sendo demonstrado em 100% dos primatas, facilitando o fibular longo na abdução do hálux, importante para o movimento de pinça nestes espécimes(10). Como descrito em estudos anteriores(4,6) e corroborado pelo presente estudo, foi encontrada cartilagem hialina na superfície cuboide do tendão no sulco do cuboide. Ebraheim et al. descreveram uma articulação sinovial separada entre o cuboide e o tendão fibular longo, sem comunicação com a bainha tendínea, chamada de articulação peroneocuboide(6). Nosso estudo avaliou somente aspectos histológicos qualitativos da superfície articular do tendão fibular longo e não a existência desta articulação. Este estudo teve algumas limitações. Não foi realizada a pesquisa radiográfica com os tendões in situ para correlacionar a incidência do ossículo fibular com os espécimes dissecados. Também, o estudo radiográfico poderia ter sido realizado com o uso de aparelho e filmes usados na mamografia, ideais para averiguar pequenas calcificações. Além disso, o exame histológico foi realizado somente em dois tendões em que os autores estavam em dúvida a respeito da existência da ossificação. Finalmente, como a pesquisa foi feita em fragmentos cadavéricos, com perda de história clínica pregressa a respeito de doenças na região lateral do pé, esta poderia influenciar o resultado final.
CONCLUSÃO Todas as peças estudadas demonstraram espessamento focal do tendão na região da curvatura sob o cuboide. Porém, após análise quantitativa, nos dois casos submetidos ao estudo histológico foi verificado que o tendão era composto de fibrocartilagem e revestido por cartilagem hialina na superfície de contato com o osso cuboide. Assim, o ossículo fibular foi observado em 26% (13/50) dos espécimes ao estudo radiológico e em 28% (14/50) dos espécimes avaliados morfologicamente (macroscopia e microscopia). Houve discordância em um espécime, que era duvidoso ao estudo radiológico e positivo para a presença do ossículo na avaliação macroscópica.
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Endereço para correspondência: Recebido para publicação em 9/10/2008.
* Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. |