Radiologia Brasileira - Publicação Científica Oficial do Colégio Brasileiro de Radiologia

AMB - Associação Médica Brasileira CNA - Comissão Nacional de Acreditação
Idioma/Language: Português Inglês

Vol. 43 nº 2 - Mar. / Abr.  of 2010

ARTIGO ORIGINAL
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Page(s) 69 to 76



Aspectos ultrassonográficos e hemodinâmicos da esquistossomose mansônica: avaliação pela ultrassonografia Doppler em áreas endêmicas

Autho(rs): Leticia Martins Azeredo, Leonardo Campos de Queiroz, Carolina Coimbra Marinho, Maria Cristina Carvalho do Espírito Santo, Maria Cristina Chammas, Raiza Ruiz-Guevara, Aluizio Prata, Carlos Mauricio Figueiredo Antunes, José Roberto Lambertucci, Giovanni Guido Cerri

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Texto em Português English Text

Descritores: Esquistossomose mansônica, Ultrassonografia Doppler

Keywords: Schistosomiasis mansoni, Doppler sonography

Resumo:
OBJETIVO: Este estudo de campo objetivou identificar as alterações ultrassonográficas e hemodinâmicas indicativas da morbidade da esquistossomose mansônica em áreas endêmicas. MATERIAIS E MÉTODOS: Foram examinados pela ultrassonografia Doppler 554 pacientes esquistossomóticos em três áreas com níveis distintos de endemicidade: baixa endemicidade (n = 109); média endemicidade (n = 255) e alta endemicidade (n = 190). Para o estudo ultrassonográfico foi utilizado o protocolo da Organização Mundial da Saúde (Niamey Working Group, 2000). Pelo Doppler foram avaliados: vasos portais, artérias hepática e esplênica, veias hepáticas e vasos colaterais. RESULTADOS: Houve correlação significativa entre a frequência das alterações ultrassonográficas e o nível de endemicidade das áreas, exceto a hipertrofia do lobo esquerdo. As veias hepáticas apresentaram padrão de fluxo alterado em 23,7% dos casos, alteração esta relacionada à presença e à intensidade de espessamento periportal. A artéria hepática não apresentou alterações nos parâmetros avaliados. Os vasos colaterais foram identificados apenas na área de alta endemicidade. A artéria esplênica apresentou alterações (aumento do calibre, da velocidade e do índice de resistência) mais frequentes na área de alta endemicidade, com diferença significativa entre os grupos. CONCLUSÃO: A ultrassonografia Doppler mostrou-se ferramenta auxiliar importante no estudo da morbidade relacionada à esquistossomose mansônica, contribuindo para definição mais precisa do perfil da doença nas áreas endêmicas.

Abstract:
OBJECTIVE: The present field research was aimed at identifying sonographic and hemodynamic findings indicative of the presence of schistosomiasis mansoni in endemic areas. MATERIALS AND METHODS: Doppler sonography was performed in 554 patients with schistosomiasis in three areas with different endemicity levels: low (n = 109), medium (n = 255) and high endemicity (n = 190). The World Health Organization (Niamey Working Group, 2000) protocol was adopted for sonographic evaluation. Doppler study included portal vessels, hepatic and splenic arteries, hepatic veins and collateral vessels. RESULTS: A significant correlation was observed between the frequency of sonographic findings, except for left lobe hypertrophy, and the areas endemicity levels. Altered hepatic veins flow pattern was observed in 23.7% of cases, such abnormality being related to the presence and intensity of periportal thickening. Hepatic arteries did not present any alteration as related to the evaluated parameters. Collateral vessels were identified only in the patients from the high-endemicity area. The splenic artery presented alterations (increase in caliber, flow velocity and resistive index), most frequently in the high-endemicity area, with significant difference between groups. CONCLUSION: Doppler sonography has shown to be a relevant auxiliary tool in the study of the morbidity related to schistosomiasis mansoni, contributing for a more accurate description of the disease profile in endemic areas.

VDoutora, Diretora do Serviço de Ultrassonografia do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil
VIDoutora, Médica do Departamento de Gastroenterologia da Facultad de Medicina da Universidad Central de Venezuela, Caracas, Venezuela
VIIProfessor Titular da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil
VIIIDoutor, Professor Titular do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IXPós-Doutorado, Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
XProfessor Titular do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Chefe do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

INTRODUÇÃO

A esquistossomose mansônica acomete, atualmente, cerca de seis milhões de brasileiros. Aproximadamente 5% a 10% dos infectados desenvolvem a forma hepatoesplênica(1), podendo evoluir com quadro de hipertensão portal. A fibrose, processo cicatricial que se segue à reação inflamatória causada pela presença de ovos do parasita nas paredes dos vasos portais, envolvendo secundariamente as vias biliares(2), é o substrato anatômico desta forma grave da doença. Diferentemente de outras hepatopatias crônicas, na esquistossomose, por não haver lesão do hepatócito, a função hepática em geral encontra-se preservada. A hemorragia digestiva alta pela ruptura de varizes esofagogástricas decorrente do quadro hipertensivo é a responsável pela morbimortalidade relacionada à esquistossomose mansônica.

Portanto, são as lesões vasculares que determinam os aspectos clínicos fundamentais desta parasitose. A ultrassonografia (US), por sua capacidade em revelar o estágio da doença, tem sido amplamente utilizada nos estudos de morbidade da esquistossomose mansônica nas áreas endêmicas(3–6). É atualmente considerada o método de escolha em estudos populacionais(7), mostrando-se superior ao exame físico para o diagnóstico, planejamento e monitoramento dos programas de controle da doença(8). Embora os vasos do sistema portal sejam bem identificados pela US(7), as informações hemodinâmicas só eram obtidas por técnicas radiológicas invasivas de difícil aplicação em estudos populacionais(9,10). A US-Doppler representou um marco no estudo da circulação portal, possibilitando o acesso não invasivo aos seus aspectos morfológicos e funcionais(11,12).

Os estudos prévios sobre a hemodinâmica portal na esquistossomose mansônica por meio da US-Doppler, todos realizados em ambiente hospitalar, voltaram-se para a avaliação das formas graves da doença.

Assim, torna-se importante uma investigação dopplervelocimétrica mais abrangente, que contemple as diversas formas da doença, principalmente as oligossintomáticas ou assintomáticas, maioria nas áreas endêmicas.

Este trabalho, o primeiro a utilizar a US-Doppler em estudo de campo e avaliar três áreas com níveis distintos de endemicidade, objetivou identificar as alterações ultrassonográficas e hemodinâmicas indicativas da morbidade da esquistossomose mansônica nos vários estágios da doença.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Áreas estudadas e composição da amostra

Para este estudo transversal descritivo, três áreas endêmicas foram selecionadas de acordo com os critérios de endemicidade para esquistossomose mansônica definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS)(13), que levam em conta a prevalência, a carga parasitária e a manifestação clínica da doença:

1. Alta endemicidade – Brejo do Espírito Santo, distrito rural do município de Santa Maria da Vitória, Bahia.

2. Média endemicidade – Chonim de Baixo, distrito do município de Governador Valadares, Minas Gerais.

3. Baixa endemicidade – município de Bananal, São Paulo.

Foram incluídos no estudo 554 pacientes com histórico de infecção pelo Schistosoma mansoni, comprovada por exame parasitológico de fezes. Os critérios de exclusão foram: esplenectomia, hepatopatia crônica não esquistossomótica identificada pela US e ascite.

Todos os participantes ou seus responsáveis assinaram termo de consentimento livre e esclarecido. O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Os voluntários, 325 (58,7%) do sexo masculino e 229 (41,3%) do sexo feminino, com idades entre 10 e 92 anos (média de 36,7 anos), foram divididos em três grupos, de acordo com o local de realização do exame: área de baixa endemicidade (n = 109), área de média endemicidade (n = 255) e área de alta endemicidade (n = 190).

Métodos

US convencional – O diâmetro longitudinal dos lobos hepáticos e do baço, o diâmetro das veias porta, esplênica e mesentérica superior, a espessura da parede da vesícula biliar, a presença, o grau, a distribuição e a classificação do espessamento periportal foram avaliados por dois profissionais de acordo com o protocolo do Niamey Working Group, 2000(14,15), utilizando-se equipamento portátil GE modelo Logiq 100 (General Electric Medical Systems; Wisconsin, EUA) com sonda convexa de 3,5 MHz. Também foram avaliados, ao modo B, o diâmetro das artérias hepática e esplênica e a presença de vasos colaterais.

US-Doppler – A patência, direção e velocidade máxima de fluxo nas veias porta (VPmax), esplênica (VEmax), mesentérica superior (VMSmax) e colaterais, o padrão espectral de fluxo nas veias hepáticas, a velocidade de pico sistólico e o índice de resistência (IR) da artéria hepática e artéria esplênica foram avaliados por um único profissional, utilizando-se equipamento portátil GE modelo Logiq-Book (General Electric Medical Systems; Wisconsin, EUA) com sonda convexa de 3,5 MHz. O traçado espectral das veias hepáticas foi classificado como trifásico (presença de onda reversa), bifásico (redução da amplitude oscilatória com perda da onda reversa), ou monofásico (fluxo retificado)(16).

Os pacientes foram examinados sem jejum prévio e sem preparo intestinal, devido à dificuldade em se padronizar este preparo em estudos de campo.

Análise estatística

Para o processamento e análise dos dados foi utilizado o software SPSS 12.0. Em todas as análises foi considerado o nível de 5% de significância.

Nas associações estatísticas entre as variáveis categóricas, foram utilizados o teste do qui-quadrado de Pearson para comparação de proporções ou o teste exato de Fisher para comparação de proporções com pequenas frequências. Na associação de variáveis contínuas, empregou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney para comparação de dois grupos ou Kruskall-Walis para comparação de três ou mais grupos. Usou-se ainda o coeficiente de correlação de Spearman na comparação entre duas variáveis contínuas. Optou-se por testes não paramétricos para as variáveis contínuas, devido ao caráter assimétrico das variáveis testadas.

 

RESULTADOS

US convencional

A média do diâmetro longitudinal do lobo direito foi de 126,9 mm e a do lobo esquerdo foi de 86,5 mm. O diâmetro longitudinal do baço variou de 34 a 232 mm, com média de 91,8 mm. A redução do lobo direito (de acordo com os critérios do Niamey Working Group, 2000)(14) e o aumento do baço (> 120 mm)(17) foram mais frequentes na área de alta endemicidade, havendo diferença significativa entre os grupos (p < 0,001) (Tabela 1). A prevalência do aumento do lobo esquerdo (> 110 mm)(17) foi mais alta na área de média endemicidade, sem, no entanto, apresentar diferença significativa entre os grupos (p = 0,130) (Tabela 1).

 

 

O diâmetro médio da veia porta foi de 10,2 mm (variação de 3,0 a 19,0 mm), da veia esplênica foi de 6,8 mm (3,0 a 21,0 mm) e da veia mesentérica superior, de 7,4 mm (0,7 a 17,0 mm), sem diferença significativa entre as áreas nos casos da veia porta (p = 0,523) e veia esplênica (p = 0,322) e com diferença significativa no caso da veia mesentérica superior (p = 0,024).

A dilatação da veia porta (> 12 mm)(17), veia esplênica e veia mesentérica superior (> 9 mm)(17) foi mais prevalente na área de alta endemicidade, verificando-se diferença significativa entre os grupos (p < 0,001) (Tabela 2). Não foi possível medir o diâmetro da veia porta em dois pacientes, da veia esplênica em quatro pacientes e da veia mesentérica superior em seis pacientes.

 

 

O diâmetro da artéria hepática teve média de 3,5 mm, com variação de 2,1 a 5,4 mm. Levando-se em conta o valor de referência para a normalidade (3,8 mm ± 0,8)(18), apenas 5 de 481 pacientes (1,0%) apresentaram diâmetro da artéria hepática aumentado. O diâmetro da artéria esplênica teve média de 3,9 mm, mínimo de 2,2 mm e máximo de 12,3 mm.

A espessura da parede da vesícula biliar variou de 1 a 22 mm, com média de 3,0 mm. Na estratificação por área de endemicidade, observou-se diferença significativa entre os grupos (p < 0,001), sendo o espessamento (> 5 mm)(19,20) mais frequente na área de alta endemicidade (Tabela 3) (Figura 1). A vesícula biliar foi avaliada em 548 pacientes, visto que 6 eram colecistectomizados.

 

 

 

 

Os resultados da presença e do grau de espessamento periportal e sua classificação segundo os padrões de acometimento da OMS (Niamey Working Group, 2000)(14) demonstraram diferença significativa entre os grupos (p < 0,001) (Tabela 3) (Figuras 2 e 3). A distribuição do espessamento ocorreu de forma semelhante entre as áreas (p = 0,034).

 

 

 

 

US-Doppler

As médias das velocidades máximas de fluxo nos vasos do sistema portal foram: VPmax = 23,1 cm/s (variação de 12,0 a 55,6 cm/s), VEmax = 22,4 cm/s (variação de 11,9 a 44,5 cm/s) e VMSmax = 27,6 cm/s (variação de 14,1 a 55,2 cm/s).

De acordo com o valor de referência (> 15 cm/s) para a velocidade da veia porta(21), foram registrados 14/552 casos (2,5%) com velocidade portal reduzida, todos na área de alta endemicidade.

Em um paciente da área de alta endemicidade foi identificada trombose portal e em outro da mesma área observou-se fluxo hepatofugal de baixa velocidade na veia porta. A veia esplênica e a veia mesentérica superior apresentaram fluxo hepatopetal em todos os casos.

Nas artérias, as médias das velocidades de pico sistólico e do IR encontradas foram de 80,1 cm/s e 0,70 na artéria hepática e de 82,0 cm/s e 0,60 na artéria esplênica, respectivamente. Considerando-se os valores normais de 0,69 ± 0,16(22), todos os pacientes apresentaram valores do IR na artéria hepática dentro da normalidade. As artérias não foram identificadas em 84/554 pacientes (15,1%) no caso da artéria hepática e em 83/554 pacientes (15,0%) no caso da artéria esplênica. Na área de alta endemicidade observou-se associação significativa entre a presença e o grau de espessamento periportal e a não identificação da artéria hepática (p < 0,001). A artéria foi identificada em 106/161 (65,8%) dos pacientes sem espessamento periportal e em apenas 55/161 (34,2%) daqueles que tinham a lesão. No entanto, nos casos em que a artéria hepática foi identificada e mensurada, não houve diferença significativa no calibre do vaso (p = 0,223) entre os pacientes que apresentavam e os que não apresentavam fibrose periportal (diâmetro médio de 3,6 mm em ambas as situações).

A associação entre o diâmetro, o IR e a velocidade de pico sistólico da artéria esplênica e a presença ou não de esplenomegalia demonstrou diferença significativa (p < 0,001) nas áreas de média e alta endemicidades. O diâmetro médio da artéria aumentou de 3,8 mm entre os pacientes sem esplenomegalia para 5,3 mm entre aqueles que a apresentavam. A média do IR e a média da velocidade de pico sistólico foram maiores (0,70 e 101,4 cm/s) entre os pacientes com esplenomegalia, quando comparados com aqueles sem essa característica (0,60 e 80,5 cm/s).

Considerando-se normal o padrão trifásico e alterados os padrões bifásico e monofásico(16), identificou-se alteração espectral no fluxo das veias hepáticas em 23,7% dos pacientes. A alteração mostrou-se relacionada à presença e à intensidade de espessamento periportal, com uma frequência maior na área de alta endemicidade (30,8% versus 19,0% na área de média e 12,3% na área de baixa endemicidade), sendo a diferença significativa entre os grupos (p = 0,030). Foram identificados, ao Doppler, 15 vasos colaterais em 11 pacientes (4 com mais de um tipo de colateral), todos da área de alta endemicidade, representando 2,7% da amostra total e 7,9% dessa área. A colateral mais frequente foi a veia gástrica esquerda (7/15; 46%), em seguida as colaterais retroperitoneais (4/15; 27%) (Figura 4), gástricas curtas (2/15; 13%), paraumbilical (1/15; 7%) e shunts portossistêmicos intra-hepáticos espontâneos (1/15; 7%) (Figura 5). Todas as colaterais gástricas esquerdas apresentaram fluxo hepatofugal com velocidades superiores às da veia porta.

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Várias investigações buscaram estabelecer, a partir dos achados ultrassonográficos, a correlação entre morbidade/endemicidade na esquistossomose mansônica, definindo níveis de acometimento da doença.

O que se objetivou neste trabalho foi estabelecer essa correlação não apenas pelas alterações ecográficas do fígado, baço e sistema vascular, mas também pelos aspectos funcionais da circulação portal obtidos pelo Doppler.

No presente estudo, a frequência dos sinais ultrassonográficos da morbidade relacionada à esquistossomose mansônica mostrou correlação significativa com o nível de endemicidade das áreas em praticamente todos os parâmetros avaliados.

O espessamento periportal, a esplenomegalia, o espessamento da parede da vesícula biliar, a redução do lobo direito e a dilatação dos vasos portais demonstraram prevalência fortemente associada ao nível de endemicidade das áreas e ao estágio da doença. Todos esses marcadores apresentaram frequência maior na área de alta endemicidade, com diferença significativa entre os grupos (p < 0,001) e com índices bastante semelhantes aos relatados na literatura quando comparados a estudos realizados em áreas com o mesmo nível de prevalência para esquistossomose mansônica.

A hipertrofia do lobo esquerdo foi a única variável ao modo B que não apresentou diferença significativa entre as áreas. Embora atribuída ao hiperfluxo esplênico e descrita inicialmente na forma hepatoesplênica(10), alguns autores já haviam relatado o aumento deste lobo também nas formas brandas da doença(23,24).

A frequência dessa alteração em nossa série, embora sem significância estatística, foi maior nas áreas de média e baixa endemicidades, onde se encontra maioria de formas brandas. Nessas áreas não houve correlação significativa entre o aumento do lobo esquerdo e algumas variáveis indicativas de hiperfluxo esplênico, como a esplenomegalia e a dilatação da veia porta e veia esplênica, indicando não ser essa a causa da hipertrofia nesses pacientes.

Além de ser o único parâmetro a não registrar diferença entre as áreas, a hipertrofia do lobo esquerdo também foi a única alteração a apresentar prevalência mais baixa na área de alta endemicidade. Correlacionando a presença de hipertrofia com o grau de espessamento periportal, constatou-se que dos pacientes com espessamento acentuado, todos da área de alta endemicidade, nenhum apresentou aumento do lobo esquerdo. Esse resultado indica que nas formas avançadas da doença a fibrose periportal intensa retrai a cápsula de Glisson, reduzindo as dimensões hepáticas, explicando assim a menor frequência de hipertrofia do lobo esquerdo na área de alta endemicidade.

Portanto, pode-se concluir que o aumento do lobo esquerdo ocorre em todos os estágios da doença, porém com frequência menor nos casos mais avançados, e que esse aumento não pode ser atribuído exclusivamente ao hiperfluxo esplênico(24).

Em relação ao estudo Doppler, enfatiza-se aqui a sua viabilidade e aplicabilidade em estudos de campo. Apesar das condições precárias, os exames transcorreram sem contratempos. Os problemas técnicos enfrentados foram a não identificação de alguns vasos, a não detecção de fluxo em artérias de pequeno calibre ou, ainda, a impossibilidade de se obter o ângulo adequado para a medida de velocidade. Na maioria dos casos essas dificuldades estavam relacionadas à obesidade ou à falta de preparo intestinal.

Obteve-se sucesso na visualização e mapeamento de fluxo em quase a totalidade das veias (veia porta: 99,6%; veia esplênica: 99,3%; veia mesentérica superior: 98,9%). Nas artérias, o índice de sucesso foi mais baixo (artéria hepática: 84,8%; artéria esplênica: 85,0%), principalmente devido ao pequeno calibre desses vasos ou à interposição gasosa. No caso da artéria hepática, surgiu dificuldade adicional nos pacientes com fibrose no hilo hepático.

O valor médio da velocidade máxima da veia porta na presente avaliação foi de 23,1 ± 6,3 cm/s. Em apenas 14/552 (2,5%) pacientes a velocidade máxima encontrada estava abaixo do limite de normalidade (15 cm/s)(21). Associando o diâmetro à velocidade de fluxo da veia porta, encontramos correlação inversamente significativa entre as duas variáveis (coeficiente de Spearman: –0,262; p < 0,001), indicando que à medida que o diâmetro da veia aumenta, sua velocidade tende a diminuir. Embora não se tenha calculado o volume de fluxo neste trabalho, estes resultados permitiram concluir, em concordância com Paranaguá-Vezozzo e Cerri(25), que o hiperfluxo portal descrito na forma hepatoesplênica está relacionado ao aumento do diâmetro do vaso e não à velocidade do fluxo.

O padrão espectral do fluxo nas veias hepáticas é modulado pelas fases do ciclo cardíaco e está diretamente associado à complacência do parênquima hepático. A alteração da fasicidade na curva espectral das veias hepáticas, identificada em 23,7% dos pacientes deste estudo, foi mais frequente na área de alta endemicidade, com diferença significante entre os grupos (p = 0,030). A relação foi significativa quando se associou a alteração do padrão de ondas à presença e à intensidade de espessamento periportal (p < 0,001). Estes resultados comprovaram que a fibrose periportal presente na esquistossomose mansônica, apesar de não invadir os lóbulos hepáticos(26), reduz a complacência do parênquima nas formas avançadas da doença, alterando o traçado espectral das veias hepáticas.

Constatou-se, nesta investigação, circulação colateral em 11 pacientes da área de alta endemicidade, correspondendo a 5,9% dos pacientes daquele grupo e a 2,0% da amostra total.

A US-Doppler demonstrou mais acurácia no diagnóstico da circulação colateral do que a US convencional. Além de identificar maior número de colaterais, foi detectado um caso falso-positivo de colateral gástrica esquerda, que descrita ao modo B, não foi confirmada ao Doppler. A veia paraumbilical recanalizada, dois casos de colaterais retroperitoneais e os shunts portossistêmicos intra-hepáticos não haviam sido diagnosticados no exame convencional.

Foi observada uma relação inversa, embora não significativa, entre a velocidade de fluxo na colateral e a velocidade de fluxo na veia porta, confirmando o importante papel da colateral na redução do fluxo portal. Essa relação não foi verificada apenas no caso da colateral paraumbilical, que, ao contrário, apresentou velocidade maior na veia porta e no seu ramo esquerdo.

A participação da artéria hepática na hemodinâmica da esquistossomose mansônica é assunto controverso na literatura. Alguns autores referem diâmetros normais na artéria(27), outros citam diâmetros reduzidos(10) e há ainda um terceiro grupo que sugere diâmetros acima do normal(28).

No presente estudo, a frequência de visualização da artéria hepática foi menor na área de alta endemicidade (84,7%), sem, no entanto, apresentar diferença significativa entre os grupos. Nessa área, a não identificação da artéria mostrou-se relacionada à presença e ao grau de espessamento periportal (p < 0,001). Contudo, uma vez identificada, o diâmetro médio e os valores dopplervelocimétricos da artéria mostravam-se dentro dos limites normais e sem diferença entre os grupos. Esses resultados demonstram que, nesses pacientes, a limitação na visualização da artéria foi de ordem técnica, causada pelo aumento da ecogenicidade no hilo hepático devido à fibrose.

Além disso, observou-se correlação significativa e direta entre a velocidade máxima de fluxo na veia porta e a velocidade de pico sistólico da artéria hepática (coeficiente = 0,179). Isto atestou não existir na esquistossomose, como na cirrose, relação inversa entre os fluxos portal e arterial.

Estes resultados foram indicativos de que a artéria hepática, assim como afirmaram alguns autores(27,29), estava dentro dos limites normais em todos os parâmetros avaliados e acompanhou passivamente a hemodinâmica do processo patogênico esquistossomótico.

Em relação à artéria esplênica, este é o primeiro trabalho a investigar seu comportamento pela US-Doppler nos vários estágios evolutivos da esquistossomose mansônica. Observou-se correlação significativa (p < 0,001) entre a presença de esplenomegalia e o aumento do diâmetro, da velocidade do pico sistólico e do IR dessa artéria. Se, por um lado, o aumento do diâmetro e da velocidade de pico sistólico indicam maior volume de fluxo arterial (necessário para suprir a demanda do baço volumoso), por outro, a elevação do IR reflete a dificuldade da passagem desse fluxo pelo leito capilar esplênico. Essa dificuldade de escoamento está diretamente relacionada à congestão venosa intraesplênica causada pelo aumento da pressão portal. Esses resultados indicam que na esquistossomose hepatoesplênica, assim como na cirrose(30), o IR da artéria esplênica reflete a resistência do fluxo venoso portal, podendo ser parâmetro auxiliar no diagnóstico do quadro de hipertensão portal.

Concluindo, os resultados obtidos neste estudo indicam que:

–a US-Doppler mostrou-se método viável e adequada para avaliação não invasiva das alterações hemodinâmicas da esquistossomose mansônica em estudos de campo;

–os sinais ultrassonográficos da morbidade da doença são parâmetros fidedignos do nível de endemicidade das áreas estudadas, exceto a hipertrofia do lobo esquerdo;

–as veias hepáticas apresentaram padrão de fluxo alterado em número significativo de pacientes, estando a alteração relacionada à presença e à intensidade de espessamento periportal;

–a artéria hepática não mostrou alterações nos parâmetros avaliados, sugerindo comportamento passivo no processo patogênico esquistossomótico;

–a artéria esplênica apresentou alterações hemodinâmicas significativas secundárias ao quadro hipertensivo portal.

Finalmente, entendemos ser a US-Doppler ferramenta auxiliar importante no estudo da morbidade relacionada à esquistossomose mansônica, contribuindo para uma definição mais precisa do perfil da doença nas áreas endêmicas.

Agradecimentos

Expressamos os nossos agradecimentos ao professor José Carlos Serufo (Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais), pela valiosa contribuição nas pesquisas de campo; àsdoutoras Sandra Costa Drummond (Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais), Maria Laura Mariano de Matos e Mariana Benevides Santos Paiva e ao doutor Ahraby Zaryff Morais Kansaon (Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais), pela colaboração nos trabalhos de campo em Chonim de Baixo; às doutoras Izabela Voieta, Thais Sanai, Ana Carolina Figueiredo Pereira e Marina Nishi (Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais), pela participação nos trabalhos de campo em Brejo do Espírito Santo; à GE Healthcare, pela cessão dos equipamentos portáteis de ultrassonografia.

 

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Endereço para correspondência:
Dra. Leticia Martins Azeredo.
Rua Dona Salvadora, 108, ap. 300, Serra
Belo Horizonte, MG, Brasil, 30220-230
E-mail: lmazeredo@hotmail.com

Recebido para publicação em 4/8/2009.
Aceito, após revisão, em 25/2/2010.

 

 

* Trabalho realizado através do Programa de Pós-Graduação em Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, SP, Brasil. A pesquisa de campo envolveu três instituições: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Departamentos de Radiologia e Medicina Tropical e Infectologia), Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (Departamento de Clínica Médica – Doenças Infecciosas e Parasitárias) e Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (Departamento de Clínica Médica – Medicina Tropical).


 
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