Radiologia Brasileira - Publicação Científica Oficial do Colégio Brasileiro de Radiologia

AMB - Associação Médica Brasileira CNA - Comissão Nacional de Acreditação
Idioma/Language: Português Inglês

Vol. 46 nº 4 - Jul. / Ago.  of 2013

ARTIGOS DE REVISÃO
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Page(s) 227 to 233



Anomalias congênitas da veia cava inferior: revisão dos achados na tomografia computadorizada multidetectores e ressonância magnética*

Autho(rs): Catherine Yang1; Henrique Simão Trad2; Silvana Machado Mendonça3; Clovis Simão Trad4

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Texto em Português English Text

Descritores: Veia cava inferior; Anormalidades congênitas; Trombose venosa.

Keywords: Inferior vena cava; Congenital abnormalities; Venous thrombosis.

Resumo:
Anomalias da veia cava inferior são incomuns, ocorrendo em até 8,7% da população, quando consideradas as anomalias da veia renal esquerda. A veia cava inferior se desenvolve da sexta à oitava semanas de gestação, originada de três veias embrionárias pareadas: veias subcardinais, supracardinais e pós-cardinais. A complexidade da ontogenia da veia cava inferior, com numerosas anastomoses entre essas três veias embrionárias, pode levar a uma grande variedade do retorno venoso do abdome e membros inferiores. Algumas dessas anomalias têm implicações clínicas e cirúrgicas significativas, associadas a outras anomalias congênitas, e em alguns casos, associadas a trombose venosa de membros inferiores, principalmente em pacientes adultos jovens. Foram revistos os exames de dez pacientes com anomalias da veia cava inferior, três deles com trombose venosa profunda de membros inferiores. Foram salientados os principais aspectos das anomalias da veia cava inferior, nos exames de tomografia computadorizada multidetectores e ressonância magnética, correlacionados com a embriologia e demonstrando as principais vias alternativas de drenagem venosa. O conhecimento das anomalias da veia cava inferior é fundamental na avaliação dos exames de imagem do abdome, evitando erros de interpretação e indicando a possibilidade de anomalias associadas, implicações clínicas e cirúrgicas.

Abstract:
Inferior vena cava anomalies are rare, occurring in up to 8.7% of the population, as left renal vein anomalies are considered. The inferior vena cava develops from the sixth to the eighth gestational weeks, originating from three paired embryonic veins, namely the subcardinal, supracardinal and postcardinal veins. This complex ontogenesis of the inferior vena cava, with multiple anastomoses between the pairs of embryonic veins, leads to a number of anatomic variations in the venous return from the abdomen and lower limbs. Some of such variations have significant clinical and surgical implications related to other cardiovascular anomalies and in some cases associated with venous thrombosis of lower limbs, particularly in young adults. The authors reviewed images of ten patients with inferior vena cava anomalies, three of them with deep venous thrombosis. The authors highlight the major findings of inferior vena cava anomalies at multidetector computed tomography and magnetic resonance imaging, correlating them the embryonic development and demonstrating the main alternative pathways for venous drainage. The knowledge on the inferior vena cava anomalies is critical in the assessment of abdominal images to avoid misdiagnosis and to indicate the possibility of associated anomalies, besides clinical and surgical implications.

INTRODUÇÃO

Anomalias congênitas da veia cava inferior (VCI) são incomuns, ocorrendo em até 8,7% da população, quando consideradas as anomalias da veia renal esquerda(1). Com um desenvolvimento embriológico complexo, originada de múltiplas estruturas embrionárias, diversas variações anatômicas do retorno venoso do abdome e membros inferiores podem ocorrer(1–6). Algumas dessas anomalias têm implicações clínicas relevantes, associadas a outras anomalias congênitas, histórico de trombose venosa de membros inferiores e hematúria, e podem acarretar alterações em planejamentos cirúrgicos(3,7–10).

Com o advento da tomografia computadorizada multidetectores (TCMD) e das técnicas volumétricas de ressonância magnética (RM), a demonstração das anomalias da VCI ficou mais fácil(4–6,11). Entretanto, não é incomum que estes achados deixem de ser descritos nos laudos radiológicos, podendo impactar negativamente na conduta dos pacientes. Neste estudo foi feita uma revisão simplificada da embriologia da VCI, demonstrando as principais anomalias congênitas, com avaliação, apresentação e discussão de dez casos.

Foram revistos, retrospectivamente, os exames de TC e RM de dez pacientes que apresentaram anomalias da VCI, realizados entre 2008 e 2010. Os exames de TC foram realizados em aparelho multidetector de 16 canais, com aquisição volumétrica de 1,25 mm de espessura, sem espaçamento, após injeção intravenosa de 100 ml de contraste iodado. Os exames de RM foram realizados em máquina de alto campo, de 1,5 tesla, com aquisição de imagens ponderadas em T1, T2, sequência de angio-RM e sequência gradiente-eco T1 volumétrica pós-contraste em fase tardia.

Dos dez pacientes, cinco eram do sexo masculino e cinco do sexo feminino, com idades variando de 6 a 77 anos (mediana de 42,5 anos). Três pacientes tinham histórico de trombose venosa profunda (TVP) de membros inferiores, com idades de 25, 29 e 47 anos (mediana de 29 anos), e realizaram os exames para esclarecimento deste quadro. Os demais realizaram exames de abdome por outros motivos, como dor abdominal, hematúria e estadiamento de neoplasia.

Dos sete pacientes sem histórico de TVP, dois apresentaram agenesia da porção intra-hepática, três apresentaram VCI dupla, um apresentou transposição da VCI e outro apresentou ureter retrocaval. A idade toda a VCI, com preservação apenas da porção intra-hepática, e o terceiro apresentou agenesia da porção renal e suprarrenal. Nos três casos, múltiplos pequenos vasos colaterais retroperitoneais foram visualizados. Mais detalhes sobre os achados estão descritos na Tabela 1 e nas Figuras de 2 a 8.




Figura 1. Reconstrução tridimensional com renderização. Os segmentos anatômicos da VCI estão coloridos separadamente, com suas origens embriológicas ressaltadas.


Figura 2. Agenesia da VCI intra-hepática associada a poliesplenia e má rotação intestinal. a: Veia ázigos dilatada no corte axial (seta) e poliesplenia (cabeça de seta). b: Sagital MIP – continuação da VCI com a ázigos calibrosa, retrocrural (seta); c: Coronal MIP – má rotação intestinal (seta indica alças delgadas; cabeça de seta indica cólon). d: 3D coronal – pâncreas curto (cabeça de seta) com veia esplênica de trajeto inferior (seta).


Figura 3. Persistência de VCI esquerda. Caso 1 (a) – VCI esquerda drenando na veia renal esquerda (seta); pequeno vaso de anastomose entre as ilíacas comuns (cabeça de seta). Caso 2 (b) – VCI esquerda drenando na veia renal esquerda (seta); ramos da ilíaca interna esquerda confluem para a VCI direita (cabeça de seta). Caso 3 (c) – VCI esquerda com trajeto retroaórtico superior (seta branca) em continuação com a veia ázigo (cabeça de seta branca); veia renal esquerda drena na VCI esquerda (seta preta) e existe comunicação retroaórtica entre as cavas inferiores, em topografia de veia renal esquerda retroaórtica (cabeça de seta preta).


Figura 4. Transposição de VCI. Coronal MIP (a) e 3D coronal (b) demonstram a VCI esquerda (setas) drenando na veia renal esquerda (cabeça de seta), anterior à aorta. VCI infrarrenal direita ausente. A VCI está em posição normal à direita nas porções renal, suprarrenal e intra-hepática.


Figura 5. Ureter retrocaval. Ureter proximal direito com trajeto posterior à VCI, cruzando entre esta e a aorta no terço médio.


Figura 6. Agenesia da VCI infrarrenal. Reconstruções MIP de angio-RM de abdome – agenesia da VCI infrarrenal (seta em a); veias retroperitoneais dilatadas e gonadal esquerda acentuadamente calibrosa (seta e cabeça de seta em b); ampliação da área de oclusão da VCI na transição renal/infrarrenal (c); varizes pélvicas (setas em d) e varizes em parede abdominal inferior (cabeças de setas em e).


Figura 7. Agenesia da VCI suprarrenal, renal e infrarrenal. Coronais MIP (a,b) – extensas colaterais calibrosas no retroperitônio (setas); ilíacas trombosadas (cabeças de setas). Axiais MIP (c,d) – colaterais calibrosas no retroperitônio com aumento do calibre das lombares (setas em c); ilíacas comuns trombosadas (cabeças de setas em d). Reconstruções em 3D – colaterais retroperitoneais e lombares.


Figura 8. Agenesia de VCI renal e suprarrenal. Coronais MIP (a,b,c) – VCI infrarrenal (setas) visível até o hilo renal, com porção suprarrenal indefinida, com múltiplos vasos calibrosos no retroperitônio (cabeças de setas). Reconstruções 3D – vasos calibrosos retroperitoneais e lombares, com aumento do calibre das veias ázigos e hemiázigos (setas); varizes pélvicas (cabeças de setas).



EMBRIOLOGIA

Ao final de sua formação embriológica, a VCI pode ser dividida em quatro segmentos: hepático, suprarrenal, renal e infrarrenal, com origens em estruturas embrionárias distintas. De uma maneira simplificada, a VCI é originada de três pares de veias: cardinais posteriores, subcardinais e supracardinais, dominantes na quarta, sexta e oitava semanas de gestação, respectivamente. Do início ao término da ontogênese da VCI, os pares de veias embrionárias apresentam regressões parciais e anastomoses, contribuindo para a formação das estruturas vasculares retroperitoneais do adulto (Tabela 2 e Figura 1).




ANOMALIAS DA VCI

Agenesia de VCI intra-hepática com continuação ázigos/hemiázigos


Embriologicamente, existe uma falha na formação da anastomose subcardino-hepática, entre os segmentos suprarrenal e hepatocardíaco(1,6). Consequentemente, o sangue é desviado para a ázigos retrocrural que se encontra dilatada até a croça, que se junta à veia cava superior no espaço paratraqueal direito. O segmento pós-hepático drena as veias supra-hepáticas diretamente no átrio direito.

Esta anomalia era classicamente descrita associada a poliesplenia/asplenia e síndromes de heterotaxia, com cardiopatias congênitas e má rotação intestinal (Figura 2)(1,4,6,8). Nestas síndromes, o conjunto de achados é bastante variável para cada paciente, com relatos de achados incidentais, como a paciente da Figura 2. Com o uso crescente de exames de imagem, cada vez mais esta anomalia é encontrada em pacientes assintomáticos, sem outras anomalias associadas.

Persistência da VCI esquerda

Resulta da persistência das veias supracardinais direita e esquerda, com duas veias cavas ao redor da aorta infrarrenal(1,4,6). A VCI esquerda tipicamente termina na veia renal esquerda, que cruza anteriormente a aorta para se unir à VCI (Figura 3). Podem ocorrer variações (Figura 3c), com a veia renal esquerda retroaórtica e continuação da VCI esquerda com a veia ázigos. A VCI esquerda se continua com as veias ilíacas, com variações nas anastomoses com as ilíacas comuns, internas e externas(2).

Transposição da VCI

Resulta da regressão da veia supracardinal direita e persistência da veia supra-cardinal esquerda. Tipicamente, a VCI esquerda termina na veia renal esquerda, que cruza anteriormente a aorta e forma uma VCI suprarrenal à direita (Figura 4)(1).

Veia renal esquerda retroaórtica/circum-aórtica

A veia renal esquerda é derivada da anastomose intersubcardinal, que cursa anteriormente à aorta. Veia renal esquerda retroaórtica (1,7% a 3,4% dos indivíduos) ocorre por regressão da anastomose intersubcardinal e drenagem renal pela anastomose intersupracardinal, retroaórtica(1,3). A persistência das duas anastomoses resulta em uma veia renal cursando anterior e outra posterior à aorta (prevalência de 2,4% a 8,7%), com a veia retroaórtica caudal em relação à pré-aórtica(1) (Figura 3c).

Ureter retrocaval

Ocorre exclusivamente no ureter direito e é uma das poucas anomalias da VCI que pode manifestar-se sintomática(1,4). Na formação da VCI infrarrenal há regressão da veia supracardinal direita, que tem trajeto posterior e medial ao ureter, com origem a partir da veia cardinal posterior direita, que se situa anteriormente ao ureter, havendo deslocamento medial deste (Figura 5). O ureter se acha preso entre a VCI e a aorta, podendo ocorrer estenose ureteral, hidronefrose a montante e infecções urinárias recorrentes.

Agenesia de VCI sub-hepática

Agenesia de segmentos sub-hepáticos da VCI pode ocorrer, envolvendo os segmentos suprarrenal, renal e infrarrenal(1,4,7). Nos três casos desta série que apresentaram antecedentes de trombose venosa de membros inferiores (Tabela 1), os achados foram de agenesia dos segmentos sub-hepáticos, sem definição de vaso retroperitoneal calibroso único que auxiliasse o retorno venoso. Foram visualizadas múltiplas colaterais venosas calibrosas no retroperitônio, incluindo veias gonadais, lombares e varizes pélvicas, com aumento do calibre do sistema ázigos/hemiázigos (Figuras 6 a 8).


ANOMALIAS DA VCI E IMPLICAÇÕES CLINICOCIRÚRGICAS

VCIs à esquerda podem acarretar erro diagnóstico com linfonodomegalia paraaórtica, acarretar dificuldades no acesso transjugular para implante de filtro de VCI, e também devem ser suspeitadas quando houver tromboembolia pulmonar recorrente em pacientes com filtro de VCI já implantado.

Anomalias da veia renal esquerda (retroaórtica e circum-aórtica) têm importância clínica principal nos planejamentos cirúrgicos e na cateterização de veia renal. Em raras ocasiões a compressão da veia renal retroaórtica pode resultar em varizes periureterais, hipertensão venosa e hematúria.

Anomalias da VCI foram reconhecidas como possível fator de risco para trombose de membros inferiores, particularmente em adultos jovens. Em alguns casos, o retorno venoso inadequado aumenta a pressão, levando a estase sanguínea nas extremidades inferiores e formação de varizes. A trombose é bilateral em 50% dos casos. Exuberante rede de colaterais é geralmente identificada, com proeminentes ázigo e hemiázigo, veias lombares ascendentes, plexo venoso paravertebral interno e veias da parede abdominal anterior. As veias lombares marcadamente dilatadas podem causar dor lombar.


CONCLUSÃO

A avaliação do retroperitônio e seus vasos é de extrema importância em exames abdominais. Apesar de incomuns, as anomalias congênitas da VCI podem trazer dificuldades de interpretação nas imagens axiais. O conhecimento básico da embriologia e das principais anomalias congênitas da VCI é necessário para a correta interpretação e descrição do radiologista, com especial atenção às alterações que podem acarretar implicações clínicas e cirúrgicas.


REFERÊNCIAS

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1. Especialista em Radiologia e Diagnóstico por Imagem, Pós-graduanda na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRPUSP), Radiologista da CEDIRP – Central de Diagnóstico Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil
2. Membro Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR), Radiologista da CEDIRP – Central de Diagnóstico Ribeirão Preto, Médico Assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRPUSP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
3. Especialista em Radiologia e Diagnóstico por Imagem, Radiologista da CDPI – Clínica de Diagnóstico Por Imagem, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
4. Doutor, Membro Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR), Radiologista e Responsável Técnico da CEDIRP – Central de Diagnóstico Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil

Endereço para correspondência:
Dr. Henrique Simão Trad
Rua Maestro Vila Lobos, 515, Jardim São Luiz
Ribeirão Preto, SP, Brasil, 14020-440
E-mail: hstrad@terra.com.br

Recebido para publicação em 5/8/2012.
Aceito, após revisão, em 4/1/2013.

* Trabalho realizado na CEDIRP – Central de Diagnóstico Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
 
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