INTRODUÇÃO
A síndrome do ressalto no joelho corresponde a uma sensação de estalido ou movimento abrupto durante a movimentação da articulação. O ressalto ou estalido pode ser produzido pelo atrito de tecidos moles contra uma proeminência óssea ou pela movimentação anômala e abrupta de estruturas intra-articulares. Para o diagnóstico desta síndrome é necessário que haja associação com sintomas. Crepitações audíveis ou sentidas pelo paciente ou um ressalto palpável ao exame físico nem sempre são sintomáticos ou patológicos.
A síndrome do ressalto tem sido diagnosticada e relatada na literatura em grandes articulações, como no ombro, no cotovelo, no punho, no quadril, no joelho e no tornozelo(1). A articulação mais frequentemente acometida é o quadril(1-4). Em geral, os sintomas associados às síndromes de ressalto estão mais relacionados à queixa de dor, mas alterações neurológicas podem eventualmente ocorrer, como no caso do ressalto do nervo ulnar no cotovelo(5).
No joelho, as causas mais frequentes da síndrome de ressalto são relacionadas às anormalidades meniscais, ao tendão do músculo bíceps femoral e aos tendões grácil e semitendíneo no canto posteromedial(6-11).
Neste trabalho é descrito um caso de ressalto da junção miotendínea distal do músculo sartório em um paciente que também apresentava hiperextensão do joelho. Não encontramos na literatura a descrição deste tipo de ressalto.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo masculino, de 58 anos de idade, branco, com antecedente de revisão de artroplastia do quadril esquerdo, passou a apresentar dor associada à sensação de estalido na face medial do joelho esquerdo seis meses após a cirurgia. No exame físico, além da confirmação de ressalto palpável durante a flexão e extensão do joelho, foi identificada hiperextensão do joelho (Figura 1). A tendência a recurvato foi observada em ambos os joelhos, mas era mais acentuada no joelho sintomático. Foi identificada, também, discrepância de 9 mm no comprimento dos membros inferiores, com encurtamento do membro inferior operado.
Figura 1. Paciente de 58 anos de idade e do sexo masculino. O exame físico revelou hiperextensão do joelho.
No caso em questão, o ângulo cérvico-diafisário da prótese no quadril esquerdo mediu cerca de 135 graus, enquanto o ângulo cérvico-diafisário do fêmur direito mediu cerca de 130 graus, e a razão entre o
offset do lado da prótese e o
offset contralateral foi de cerca de 95%.
Radiografia simples do joelho esquerdo confirmou a hiperextensão e mostrou mínimos osteófitos marginais (Figura 2). Foi solicitada ultrassonografia do joelho para avaliação de ressalto de um dos tendões da pata de ganso, suspeitando-se de ressalto do semitendíneo ou do grácil.
Figura 2. Radiografia simples com incidência em perfil confirmou a hiperextensão do joelho, com discreta deformidade em recurvato.
Na ultrassonografia foram identificados os componentes da pata anserina no canto posteromedial com o paciente em decúbito dorsal e com pequena rotação do joelho para permitir o estudo da região de interesse. Depois estes tendões foram avaliados dinamicamente durante a flexão e a extensão. O estudo por meio da ultrassonografia confirmou o ressalto no canto posteromedial, porém o ressalto estava exclusivamente relacionado à passagem abrupta do sartório em relação ao côndilo medial do fêmur (Figura 3).
Figura 3. Cortes axiais da ultrassonografia. Em A, com o joelho em flexão, não se observam estruturas com padrão muscular entre o subcutâneo e a superfície óssea (setas curtas). A imagem em B, obtida com o joelho em hiperextensão, evidencia o sartório (setas longas) situado superficialmente aos contornos ósseos (setas curtas).
Como os sintomas dolorosos eram relativamente bem tolerados pelo paciente, optou-se pelo tratamento conservador em relação ao ressalto, e após cerca de um ano e seis meses o paciente estava com queixas estáveis em relação ao início do quadro. O tratamento incluiu fisioterapia para fortalecimento muscular e palmilha para compensação da discrepância de comprimento dos membros inferiores.
DISCUSSÃO
Para os autores não ficou claro se neste caso a hiperextensão do joelho, a artroplastia total do quadril, ou a combinação destes fatores pode ser relacionada direta ou indiretamente ao aparecimento do ressalto do sartório. Os sintomas apareceram cerca de seis meses após a artroplastia e é possível conjecturar que alguma alteração do eixo mecânico do membro inferior tenha ocorrido.
Pacientes submetidos a artroplastia total do quadril podem exibir alterações do alinhamento dos membros inferiores após o procedimento(12). É uma limitação do nosso estudo que radiografias panorâmicas do membro inferior pré e pós-operatórias não estivessem disponíveis para avaliação. A artroplastia total do quadril pode induzir uma mudança no eixo mecânico, alterando a posição espacial do centro da cabeça femoral, e pode haver redução do
offset femoral(13). Esta redução do
offset das próteses femorais pode, por sua vez, levar à lateralização do eixo mecânico(12). No caso aqui descrito a redução de
offset da prótese do fêmur em relação ao fêmur contralateral foi de cerca de 5%.
No joelho, a síndrome do ressalto é mais comumente associada a doenças do menisco(7-9). O menisco lateral discoide pode causar ressalto sintomático, particularmente no caso do menisco lateral discoide tipo III, uma variante rara de menisco discoide também conhecida como variante de Wrisberg, em que a fixação posterior entre o menisco e a tíbia está ausente, com mobilidade significativamente maior do menisco(8,14). Também já foram relatados casos de ressalto no canto posterolateral do joelho relacionado ao tendão do bíceps femoral e ao tendão poplíteo(6,15). Mais raramente, o ressalto no joelho pode ser causado por tumores intra-articulares(16). No canto posteromedial, casos de ressalto têm sido descritos principalmente relacionados ao ressalto do tendão semitendíneo ao redor do semimembranáceo(10,11).
O estudo do ressalto de tendões pode ser feito pelo exame físico e por ultrassonografia, que permite o estudo dinâmico dos tendões(2,3,5,10,11). Na suspeita de distúrbios intra-articulares, a literatura enfatiza o uso da ressonância magnética(1,12). No caso ora apresentado a ultrassonografia foi capaz de caracterizar o ressalto do sartório em vez do ressalto do semitendíneo, que tem maior prevalência no canto posteromedial. Na ultrassonografia, o sartório foi facilmente diferenciado dos outros componentes da pata de ganso pela sua posição mais anterior, por sua maior área seccional ao nível do côndilo femoral e por sua composição hipoecoica relacionada às fibras musculares. Os tendões grácil e semitendíneo apresentam padrão fibrilar, são mais ecogênicos e com menor área seccional (Figura 4). No caso de ressalto do canto posteromedial relacionado ao semitendíneo e ao grácil, a excisão desses tendões já foi relatada na literatura, com sucesso no alívio dos sintomas(10,11,17). Na literatura em português e em inglês não encontramos relatos de ressalto no joelho relacionados ao sartório.
Figura 4. Corte axial oblíquo da ultrassonografia na região do canto posteromedial do joelho demonstra a diferenciação entre o sartório (seta) e os tendões do grácil (GRAC) e semitendíneo (SEMIT).
A ultrassonografia é método importante para o diagnóstico do ressalto no canto posteromedial do joelho(10,11). Neste caso a importância da ultrassonografia foi confirmada e foi identificada uma causa diferente de ressalto posteromedial no joelho.
REFERÊNCIAS
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1. Doutor, Professor da Divisão de Radiologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil.
2. Doutor, Docente do Serviço de Residência Médica em Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
Endereço para correspondência:
Dr. Marcello Henrique Nogueira-Barbosa
Departamento de Clínica Médica, Divisão de Radiologia – FMRP-USP
Avenida Bandeirantes, 3900, Campus Universitário, Monte Alegre
Ribeirão Preto, SP, Brasil, 14048-900.
E-mail: marcello@fmrp.usp.br
Recebido para publicação em 11/10/2010.
Aceito, após revisão, em 1/2/2011.
Trabalho realizado no Centro de Ciências das Imagens e Física Médica (CCIFM) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil.