RELATO DE CASO
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Autho(rs): William da Silva Neves, Milton Yochiharu Kakudate, Crescêncio Pereira Cêntola, Raphael Gouveia Garzon, Américo Poça d'Água, Rafaelo Sanches |
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Descritores: Artéria carótida interna, Agenesia, Síncope |
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Resumo: VMédico Neurologista do Hospital Beneficência Portuguesa de São José do Rio Preto, Colaborador da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, SP, Brasil
INTRODUÇÃO O desenvolvimento embriológico da circulação arterial cerebral compreende sete fases. Determinadas alterações nesse processo podem levar a agenesia ou hipoplasia dos vasos carotídeos. No início da embriogênese, desenvolvem-se dois ramos a partir da artéria carótida interna (ACI) primitiva, que deriva do terceiro arco aórtico primitivo, conforme relatam os trabalhos de Streeter(1), Padget(2) e McLone e Naidich(3). Em sua forma primitiva, a ACI alcança a região cefálica até o nível da bolsa de Rathke, onde duas divisões primárias irão acontecer. Apenas um ramo cranial se estenderá em direção anterior, para suprir a região anterior do cérebro em desenvolvimento. De forma resumida, as artérias coroidal anterior, cerebral média, cerebral anterior e olfatórias primitivas se desenvolverão desse vaso. Posteriormente, outro ramo emerge para dar origem às arterias coroidal posterior, diencefálica e mesencefálica. À medida que estes ramos avançam caudalmente, anastomoses são realizadas, com as artérias longitudinais neurais que estão se desenvolvendo e que estão sendo alimentadas por conexões entre a artéria trigeminal e a ACI primitiva. Em última instância, este padrão descreve o primeiro e segundo estágios do desenvolvimento e constitui a origem do modelo adulto de circulação cerebral que irá se estabelecer, definitivamente, após as mudanças ocorridas em outros cinco estágios, que são: o terceiro estágio, das artérias vertebrais; o quarto estágio, da artéria cerebral anterior; o quinto estágio, da artéria oftálmica; o sexto estágio, do polígono de Willis; o sétimo estágio ou estágio fetal(4).
RELATO DO CASO Paciente do sexo feminino, 14 anos de idade, de origem caucasiana, natural e procedente do interior do Estado de São Paulo, apresentou, 15 dias antes do exame, um episódio de síncope presenciado por familiares, no qual foram observados sinais de sonolência e disartria passageiros, sendo a paciente encaminhada ao neurologista. No exame físico e durante a realização de ressonância magnética (RM), a paciente apresentou-se assintomática, sem relato de novos episódios de síncope nem de outras queixas. A suspeita de agenesia da ACI foi aventada pela RM quando não se observou o flow void, típico nas seqüências spin-eco, na região da ACI (Figura 1).
Diante da suspeita do diagnóstico de agenesia ou hipoplasia da ACI direita, foram realizados exames de tomografia computadorizada (TC) sem contraste endovenoso e de angio-RM do cérebro e de vasos cervicais, para confirmar o diagnóstico. Na tomografia tentou-se diferenciar entre agenesia congênita do canal carotídeo ósseo ou agenesia adquirida por algum outro motivo e o que se observou foi a ausência do canal carotídeo do lado direito. A angio-RM cerebral e cervical foi realizada no sentido de tentar ilustrar mais o caso, conseguindo-se assim um panorama global da rede arterial cerebral da paciente e observou-se a ausência da ACI direita desde o arco aórtico (Figuras 2, 3 e 4). Ainda complementarmente, a paciente foi submetida a TC multislice, na tentativa de se evidenciar alguma outra anomalia óssea craniana, mas o que se observou foi apenas a confirmação dos outros exames, mostrando, na reconstrução tridimensional com a técnica volume rendering, a ausência do canal carotídeo à direita.
DISCUSSÃO Tem sido relatada uma incidência extremamente rara de agenesia de ACI, com apenas algumas dezenas de casos descritos no mundo, talvez em parte porque a disgenesia, por si só, seja geralmente assintomática na maioria dos pacientes. Isto porque há circulação cerebral suficiente, proveniente de anastomoses no polígono de Willis, de anastomoses intercavernosas e da artéria carotídea externa, além de artérias embriológicas persistentes. Nestes casos, os pacientes recebem encaminhamento médico em razão de complicações decorrentes de anomalias que acompanham a agenesia carotídea(57). A agenesia da ACI, quando presente, geralmente é unilateral, embora haja casos relatados de agenesia bilateral assintomática(8). Se detectada por angio-RM, deve ser confirmada por TC, em busca do achado de hipoplasia ou ausência do canal carotídeo. Geralmente, a principal fonte secundária de suprimento sanguíneo é o sistema vertebrobasilar (em casos de agenesia bilateral) ou é a ACI contralateral dominante (em casos de agenesia ou hipoplasia unilateral)(7). Os principais achados que acompanham esta anomalia são os aneurismas do polígono de Willis, as encefaloceles transesfenoidais e uma ampla rete mirabilis na base craniana. Os aneurismas intracranianos são encontrados em cerca 25% das agenesias de ACI sintomáticas com manifestações de hemorragia intracraniana(5,6,9,10). Outros achados, menos comuns, também são relatados. Há raros casos em que a agenesia está associada a atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, a agenesia do corpo caloso e a persistência do cavum vergae, em pacientes com agenesia bilateral. Estudos relatam agenesia unilateral associada a cisto aracnóide(11,12). Há, ainda, um caso relatado de associação de anomalia megadolicobasilar e atrofia olivopontocerebelar com agenesia unilateral da ACI(13). Também há raros casos relatados de hipopituitarismo associados com agenesia unilateral da artéria, embora as anastomoses intracavernosas pareçam ser eficientes(14,15). A ausência de sintomas clínicos ou neurológicos de isquemia na maioria dos pacientes com agenesia ou hipoplasia uni ou bilateral da ACI leva a crer que, na maioria dos casos, não há déficit perfusional. No entanto, a sigle-photon emission computed tomography (SPECT) com iodo-123 pode ser usada e já o foi, para comprovar a ausência de áreas com déficit perfusional, já que alguns raros pacientes experimentaram episódios de acidente isquêmico transitório, de etiologia não-identificada(11). Outros casos de agenesia da ACI foram descobertos incidentalmente, como o caso aqui relatado, por angio-RM. Nestes casos, deve-se sempre confirmar se o hipofluxo no vaso é decorrente de estenose adquirida ou de disgenesia do vaso e do canal carotídeo ósseo. Assim, deve ser realizada a TC no plano axial da base do crânio, para conferir se o canal carotídeo é mesmo patente ou disgenético, de modo a confirmar a agenesia ou hipoplasia do vaso(16). Reconstruções em três dimensões da TC com multidetectores também ajudam a confirmar casos duvidosos.
CONCLUSÃO Neste breve relato não se pretende afirmar que se deva sempre suspeitar de agenesia da ACI. Conclui-se, entretanto, que o exame minucioso e metódico dos canais carotídeos e flow voids das ACIs em busca de estenoses adquiridas (achado bem comum em pacientes com queixas neurológicas) ou não-adquiridas pode levar à descoberta dessa anomalia, que, embora silenciosa, pode estar associada a outras malformações e distúrbios potencialmente graves. Estes canais carotídeos devem sempre ser conferidos durante a leitura de exames rotineiros de TC de crânio em cortes axiais com janela óssea, já que é o sinal confirmatório da ausência da ACI e não implica aumento de tempo nem de gastos na realização do exame. O achado de um episódio de síncope nesta paciente pode estar associado a um acidente isquêmico transitório.
REFERÊNCIAS 1. Streeter GL. The developmental alterations in the vascular system of the brain of the human embryo. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins Contrib Embryol Carnegie Inst. 1918;8:538. [ ] 2. Padget DH. The development of the cranial venous system in man, from the viewpoint of comparative anatomy. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins Contrib Embryol Carnegie Inst. 1957; 36:81140. [ ] 3. McLone DG, Naidich T. Embryology of the cerebral vascular system. In: Edwards MSB, Hoffman HJ, editors. Cerebral vascular disease in children and adolescents. Baltimore, MD: Williams & Wilkins; 1989:116. [ ] 4. Truwit CL, Barkovich AJ. Disorders of brain development. In: Atlas SW, editor. MRI of the brain and spine. 2nd ed. Philadelphia, PA: Lippincott-Raven; 1997:125. [ ] 5. Blustajn J, Netchine I, Frédy D, et al. Dysgenesis of the internal carotid artery associated with transsphenoidal encephalocele: a neural crest syndrome? AJNR Am J Neuroradiol. 1999;20: 11547. [ ] 6. Quint DJ, Silbergleit R, Young WC. Absence of the carotid canals at skull base CT. Radiology. 1992;182:47781. [ ] 7. Tasar M, Yetiser S, Tasar A, et al. Congenital absence or hypoplasia of the carotid artery: radioclinical issues. Am J Otolaryngol. 2004;25: 33949. [ ] 8. Rumboldt Z, Castillo M, Solander S. Bilateral congenital absence of the internal carotid artery. Eur Radiol. 2003;13 Suppl 6:L1302. [ ] 9. Gailloud P, Clatterbuck RE, Fasel JHD, et al. Segmental agenesis of the internal carotid artery distal to the posterior communicating artery leading to the definition of a new embryologic segment. AJNR Am J Neuroradiol. 2004;25:118993. [ ] 10. Cali RL, Berg R, Rama K. Bilateral internal carotid artery agenesis: a case study and review of the literature. Surgery. 1993;113:22733. [ ] 11. Kidooka M, Okada T, Handa J. Agenesis of the internal carotid artery report of a case combined with arachnoid cyst in a child. No To Shinkei. 1992;44:3715. [ ] 12. Owada Y, Sakuta Y. Bilateral carotid artery agenesis with corpus callosum hypogenesis a case report. No To Shinkei. 1995;47:58994. [ ] 13. Okabe S, Oda N, Ishii M. Agenesis of left internal carotid artery associated with megadolichobasilar anomaly and olivopontocerebellar atrophy. Rinsho Shinkeigaku. 1989;29:1395400. [ ] 14. Moon WJ, Porto L, Lanfermann H, et al. Agenesis of internal carotid artery associated with congenital anterior hypopituitarism. Neuroradiology. 2002;44:13842. [ ] 15. Baysefer A, Akay KM, Tasar M, et al. Congenital absence of internal carotid artery associated with hypogonadotropic hypogonadism a case report. Vasc Endovascular Surg. 2002;36:45760. [ ] 16. Graham CB 3rd, Wippold FJ 2nd, Capps GW. Magnetic resonance imaging in internal carotid artery agenesis with computed tomography and angiographic correlation case reports. Angiology. 1999;50:84753. [ ]
Endereço para correspondência: Recebido para publicação em 14/9/2006. Aceito, após revisão, em 23/3/2007.
* Trabalho realizado no Centro Regional de Radiologia Intervencionista Vascular do Hospital Beneficência Portuguesa de São José do Rio Preto e no Instituto de Radiodiagnóstico Rio Preto (Ultra-X), São José do Rio Preto, SP, Brasil. |