ENSAIO PICTÓRICO
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Autho(rs): Alexandre Makoto Minoda1,a; Fernando dos Santos Ferreira2,b; Karllos Diego Ribeiro Santos1,c; Cristiano de Souza Leão1,d; Eduardo Just da Costa e Silva1,2,e; Andréa Farias de Melo-Leite1,2,f |
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Descritores: Transplante de pâncreas; Transplante de rim; Transplante de órgãos; Diabetes mellitus; Complicações pós-operatórias. |
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Resumo: INTRODUÇÃO
O transplante de pâncreas é uma terapia bem estabelecida no tratamento de pacientes com diabetes mellitus complicada com insuficiência renal em estágios avançados(1). O procedimento mais comum é o transplante simultâneo de pâncreas e rim (TSPR), que proporcionou aumento da expectativa de vida desses pacientes(2–4). Além do TSPR, podem ser realizados o transplante de pâncreas isolado ou o transplante de pâncreas após o transplante renal, em diferentes momentos(2,4). Atualmente, o TSPR é a forma mais comum de transplante de pâncreas, representando 75% de todos os transplantes de pâncreas no Brasil(4,5). Várias técnicas de imagem podem ser utilizadas para detectar complicações pós-transplante precoces e tardias(1,2). As mais utilizadas incluem a ultrassonografia (US), a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM). ANATOMIA E TÉCNICA CIRÚRGICA A técnica mais usada no TSPR consiste em colocar o enxerto pancreático na região pélvica direita e o enxerto renal na fossa ilíaca esquerda em único ato cirúrgico(2,6,7). O aloenxerto pancreático é retirado com o duodeno e o suporte vascular do doador (Figuras 1A e 1B). Seu suporte vascular arterial provém de duas artérias principais: artéria mesentérica superior e artéria esplênica(2). As artérias ilíacas do doador também são retiradas para formar um enxerto em “Y”, no qual são anastomosadas às artérias esplênica e mesentérica superior, de forma término-terminal (Figuras 2A e 2B)(1,2). No receptor, realiza-se uma anastomose término-lateral entre o enxerto arterial em “Y” à artéria ilíaca comum ou à artéria ilíaca externa do receptor (Figura 3). Figura 1. A: Desenho esquemático (vista anterior) demonstrando a aquisição do enxerto pancreático (EP), retirado em conjunto com seu suporte vascular e um segmento duodenal (dI) do doador (d). Para fins de transplante, várias estruturas vasculares (arteriais e venosas) devem ser ligadas e seccionadas, sendo essas as artérias gastroduodenal (dAGD), esplênica (dAE) e mesentérica superior (dAMS), as veias mesentéricas superior (dVMS) e inferior (dVMI), esplênica (dVE), além do segmento proximal da veia porta. B: Fotografia mostrando a aquisição do bloco pancreatoduodenal, com aloenxerto pancreático (tracejado preto) retirado junto com um segmento duodenal (tracejado branco) do doador, antes da excisão do baço (asterisco). TC, tronco celíaco. Figura 2. A: Desenho esquemático demonstrando o enxerto pancreático (EP) e o segmento duodenal (dI) do doador (d) em uma vista posterior, com ênfase nas anastomoses vasculares. Realiza-se a anastomose término-terminal da artéria ilíaca externa do doador (dAIE) com a artéria mesentérica superior do doador (dAMS) e da artéria ilíaca interna do doador (dAII) com a artéria esplênica do doador (dAE), formando o enxerto em “Y”. A artéria ilíaca comum do doador (dAIC) serve como canal arterial comum do enxerto pancreático. As veias são ressecadas em conjunto com um segmento curto da veia porta (dVP), que é usualmente utilizado para a anastomose venosa no receptor. B: Bloco pancreatoduodenal com enxerto pancreático (seta preta) e um segmento duodenal (ponta de seta) após a anastomose do enxerto arterial em “Y”, formado pelas artérias ilíaca comum (seta branca), ilíaca externa (asterisco branco) e ilíaca interna (asterisco preto) do doador. Figura 3. Desenho esquemático mostrando as anastomoses vasculares após revascularização do enxerto pancreático (EP) no receptor (r). Realiza-se uma anastomose término-lateral entre o enxerto arterial em “Y” (pela artéria ilíaca comum do doador – dAIC) à artéria ilíaca comum ou à artéria ilíaca externa (rAIE) do receptor. Anastomose término-lateral também é usada para conectar a veia porta do doador (dVP) à veia ilíaca comum direita do receptor (rVIC). VCI, veia cava inferior; dAMS, artéria mesentérica superior; dAII, artéria ilíaca interna; dAE, artéria esplênica. A drenagem venosa do aloenxerto consiste nos tributários venosos intrapancreáticos, que drenam para as veias esplênica, mesentérica superior e, posteriormente, veia porta, esta utilizada para a anastomose venosa no receptor (Figura 2A), permitindo a drenagem para o sistema venoso sistêmico (anastomose na veia ilíaca comum ou cava inferior) ou portal (anastomose na veia mesentérica superior)(1,2) (Figura 3). As secreções pancreáticas exócrinas podem ser drenadas para o trato gastrointestinal (Figuras 4A e 4B) ou para a bexiga do receptor(1,2). Os transplantes com drenagem entérica são mais realizados atualmente e consistem na anastomose entre o coto duodenal do doador e o intestino delgado do receptor(1,2,6). Figura 4. A: Desenho esquemático ilustrando a aparência intraoperatória do enxerto pancreático colocado na pelve mediante anastomose laterolateral duodenojejunal (setas) ligando o segmento duodenal do doador (dI) ao jejuno do receptor. O duodeno do doador é fechado nas duas extremidades usando suturas ou grampos (pontas de setas). O pâncreas nativo do receptor permanece no abdome superior. B: Aspecto intraoperatório do transplante simultâneo de pâncreas e rim com drenagem entérica das secreções pancreáticas exócrinas, mediante anastomose entre o coto duodenal do doador (asterisco preto) e o intestino delgado do receptor (asterisco branco), a aproximadamente 25 cm da válvula ileocecal. dVMI, veia mesentérica inferior; dVMS, veia mesentérica superior. Em relação ao transplante renal, geralmente realiza-se uma anastomose término-lateral entre a artéria renal do doador e a artéria ilíaca externa ou comum do receptor e uma anastomose entre a veia renal e a veia ilíaca externa do receptor(6,8). ASPECTOS DE IMAGEM NORMAIS NO PÓS-TRANSPLANTE Na US, a aparência normal do enxerto pancreático consiste em uma estrutura homogênea hipoecoica, e ao Doppler pode demonstrar a perfusão do enxerto, bem como a anatomia vascular(1,2). As ondas de velocidade de fluxo espectral podem ser obtidas das artérias mesentérica superior, esplênica e arcada intrapancreática e caracterizam-se por rápida elevação sistólica e fluxo diastólico anterógrado. A resistência vascular é baixa, geralmente com índice de resistência entre 0,5 e 0,7(1,2). As estruturas venosas demonstram onda monofásica em um lúmen anecoico(2). A TC sem uso de meio de contraste iodado demonstra o aloenxerto pancreático como uma estrutura homogênea isoatenuante, e a administração de contraste deve ocasionar realce parenquimatoso uniforme, maior durante a fase arterial (Figura 5), permitindo melhor avaliação da anatomia do transplante(1,2). Ressaltam-se o enxerto arterial em “Y”, a vasculatura arterial peripancreática e intrapancreática, bem como a veia porta doadora e sua anastomose (Figura 6)(1). Na RM, o enxerto pancreático normal mostra-se isointenso em ponderações em T1 e hiperintenso em T2(1,2). Figura 5. Reformatação coronal de TC com contraste mostrando realce parenquimatoso normal do corpo e cauda do enxerto pancreático (seta branca) na fossa ilíaca direita. Um segmento não dilatado do ducto pancreático é visualizado (ponta de seta). Na fossa ilíaca esquerda também se observa enxerto renal com realce parenquimatoso normal (seta preta). Figura 6. Imagem em projeção de intensidade máxima na fase arterial de TC (reconstrução coronal) mostrando enxerto em “Y” pérvio (seta) anastomosado à artéria ilíaca externa direita. Observar a anastomose do enxerto em “Y” aos ramos da artéria esplênica (ponta de seta branca) e artéria mesentérica superior (ponta de seta preta), notando-se um estreitamento no lúmen da artéria mesentérica superior. O duodeno doador geralmente é colapsado e possui paredes espessadas, mas pode ser mal interpretado como uma coleção de fluidos quando distendido(2). Os grampos cirúrgicos de ambos os lados do coto duodenal podem ser úteis para sua localização e diferenciação (Figura 7). Figura 7. Reformatação sagital de TC com contraste de enxerto pancreático com drenagem entérica na fossa ilíaca direita (seta branca), com grampos cirúrgicos (pontas de setas) ao longo do coto duodenal (seta preta), que se encontra parcialmente distendido, podendo simular uma coleção. Os grampos cirúrgicos facilitam essa diferenciação, bem como ajudam a localizar o enxerto pancreático. Outros achados do pós-operatório precoce, como pequena quantidade de líquido peripancreático (Figura 8), ectasia do ducto pancreático principal e leve borramento da gordura peripancreática, geralmente são autolimitados e não determinam repercussões clínicas(7). Figura 8. Corte axial de TC na fase portal de paciente no pós-operatório de transplante simultâneo de pâncreas (ponta de seta branca) e rim (ponta de seta preta) apresentando pequena quantidade de líquido peripancreático (seta), além de linfonodos adjacentes (asteriscos) usualmente sem significado clínico, os quais podem eventualmente simular alguma anormalidade. IMAGEM DAS COMPLICAÇÕES PÓS-TRANSPLANTE Entre as complicações pós-operatórias precoces e tardias destacam-se: complicações vasculares como trombose arterial e venosa; estenose arterial; fistulas arteriovenosas e pseudoaneurismas; coleções intra-abdominais; complicações intestinais como obstrução, deiscência e colite; complicações do enxerto pancreático, incluindo pancreatite e rejeição; doença linfoproliferativa pós-transplante(1,2,7). COMPLICAÇÕES VASCULARES A trombose aguda do enxerto é a mais frequente causa de falha precoce do transplante (2% a 10%), sendo mais comum a de origem venosa(1,2,7). Aumento volumétrico do enxerto com redução de sua atenuação e/ou heterogeneidade parenquimatosa podem ser observados (Figuras 9A e 9B). O exame Doppler pode revelar ausência de fluxo no vaso (Figura 10A) e, ocasionalmente, em todo o parênquima(2,7). Na TC ou na RM com contraste pode ser demonstrado trombo endoluminal com falha de enchimento (Figura 10B), associado ou não a diminuição/ausência de realce parenquimatoso(7). Figura 9. A: TC de abdome em paciente submetido a transplante pâncreasrim mostrando imagem linear espontaneamente hiperatenuante na fase précontraste (seta) sugestiva de trombose. Além disso, o enxerto pancreático apresenta-se heterogêneo, com áreas hipoatenuantes de permeio (elipse). B: Fase venosa da TC de abdome do mesmo paciente mostrando opacificação arterial (seta preta) e ausência de opacificação venosa (seta branca), confirmando a trombose venosa vista nas fases anteriores. Figura 10. A: Imagem transversal obtida de US ao modo power Doppler mostrando interrupção abrupta do fluxo no segmento distal da artéria mesentérica superior (seta) do enxerto pancreático, com circulação colateral adjacente (ponta de seta), achado consistente com trombose arterial. B: Correlação tomográfica do mesmo paciente, com técnica de projeção de intensidade máxima na fase arterial, identificando a mesma interrupção abrupta e falha de enchimento do segmento distal da artéria mesentérica superior do enxerto pancreático (seta), confirmando a trombose arterial vista na US. As estenoses ocorrem em qualquer local anastomótico e são incomuns, caracterizando-se por alta velocidade/turbulência na US, geralmente confirmadas com angio-TC ou angio-RM(1,2). Pseudoaneurismas associam-se a trauma cirúrgico, biópsias, pancreatite grave ou infecção(7). Na US observam-se estruturas anecoicas, arredondadas, adjacentes aos vasos, com aspecto de yin-yang no Doppler. A TC ou RM com contraste identifica dilatação sacular com realce semelhante ao vaso adjacente(2,7). A fístula arteriovenosa é outra complicação incomum, usualmente relacionada a iatrogenia (pós-cirurgia ou biópsia). O Doppler revela alta velocidade/fluxo turbulento de baixa resistência em um lúmen arterial que se comunica com uma veia, a qual apresenta fluxo pulsátil(2). COLEÇÕES INTRA-ABDOMINAIS Representam as complicações mais frequentes associadas ao transplante pancreático(7). A maioria surge no primeiro mês após o procedimento e pode representar seromas, hematomas, urinomas, abscessos, pseudocisto ou linfocele (Figura 11A). A natureza do fluido usualmente não pode ser determinado apenas pela imagem, e assim, a drenagem percutânea pode ser essencial para a condução do caso (Figura 11B)(2,7). Figura 11. A: TC de abdome sem contraste mostrando coleções fluidas (pontas de setas) adjacentes ao enxerto pancreático (elipse). Observar também pequena quantidade de líquido junto ao enxerto renal à esquerda (seta preta). B: Coleção fluida (seta branca) na fossa ilíaca direita de paciente submetido a transplante de pâncreas-rim, com drenagem por via percutânea (seta preta) vista em TC de abdome com contraste oral. COMPLICAÇÕES INTESTINAIS As complicações intestinais mais comuns são deiscência ou obstrução (Figura 12)(1,7). A obstrução, geralmente, ocorre em consequência a aderência ou hérnia interna, e a TC é importante para definir o local da obstrução(1,2,7). A deiscência ocorre comumente na anastomose intestinal e pode causar extravasamento do suco pancreático, predispondo a infecção intra-abdominal(1,2). Fístulas enterocutâneas podem surgir se uma deiscência não for diagnosticada e tratada(2). Nesse contexto, a administração de contraste oral pode ser útil, revelando sinais diretos ou indiretos de extravasamento(2,7). Figura 12. Imagem axial de TC com contraste oral de paciente no pós-operatório precoce de transplante de pâncreas-rim, com deiscência da anastomose entre o coto duodenal do doador e o intestino delgado do receptor, identificando coleção com focos gasosos de permeio adjacente ao sítio dessa anastomose (seta). COMPLICAÇÕES DO ENXERTO PANCREÁTICO Estima-se que ocorra pancreatite no pós-operatório em aproximadamente 35% dos casos(2,7). A US pode demonstrar aumento volumétrico do enxerto, heterogeneidade textural ou complicações, como coleções, pseudocistos ou necrose(1,2,7). A TC e a RM com contraste são fundamentais na avaliação da ausência de realce parenquimatoso regional ou difuso em casos de pancreatite necrosante, bem como eventuais complicações(1,2,7). A rejeição (aguda, subaguda ou crônica) representa a principal causa da perda do enxerto(2,7). Alguns achados de imagem podem ser sugestivos, tais como alteração dimensional glandular, alterações no sinal e no padrão de realce, porém não são específicos, podendo ocorrer também nas pancreatites e isquemias(2,7). Assim, o estudo histopatológico continua sendo o padrão ouro(7). DOENÇA LINFOPROLIFERATIVA PÓS-TRANSPLANTE Consiste em uma complicação rara e tardia, variando de hiperplasia linfoide benigna a linfoma agressivo, maligno e predominantemente de células B. O espectro de imagem inclui massas focais e/ou aumento volumétrico do enxerto, associado a linfadenopatias(2) (Figura 13). Figura 13. Corte axial de TC do abdome na fase arterial demonstrando, ao nível do enxerto renal, massa sólida, discretamente heterogênea e hipodensa em relação ao parênquima renal (asterisco), que se tratava de doença linfoproliferativa pós-transplante. CONCLUSÃO O TSPR representa uma opção terapêutica em casos avançados de diabetes. A técnica cirúrgica mais utilizada envolve a confecção de anastomoses vasculares e entéricas cujas características o radiologista deve ter conhecimento, assim como sua avaliação por imagem, fundamental no direcionamento do manejo pós-operatório de receptores de transplantes. REFERÊNCIAS 1. Tolat PP, Foley WD, Johnson C, et al. Pancreas transplant imaging: how I do it. Radiology. 2015;275:14–27. 2. Vandermeer FQ, Manning MA, Frazier AA, et al. Imaging of whole-organ pancreas transplants. Radiographics. 2012;32:411–35. 3. Redfield RR, Scalea JR, Odorico JS. Simultaneous pancreas and kidney transplantation: current trends and future directions. Curr Opin Organ Transplant. 2015;20:94–102. 4. Meirelles Júnior RF, Salvalaggio P, Pacheco-Silva A. Pancreas transplantation: review. Einstein (Sao Paulo). 2015;13:305–9. 5. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dados numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: janeiro/setembro 2019. Registro Brasileiro de Transplantes. 2019. [cited 2020 June 30]. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-jan-set- leitura.pdf. 6. Papachristos S, Tavakoli A, Dhanda R, et al. Comparison of ipsilateral and contralateral simultaneous pancreas and kidney transplantation: a single-center analysis with 5-year outcome. Ann Transplant. 2019;24:298–303. 7. Antunes N, Santos R, Almeida FG, et al. Pancreatic transplantation: what the radiologist needs to know. Acta Radiol Port. 2017;29:13–8. 8. Sugi MD, Joshi G, Maddu KK, et al. Imaging of renal transplant complications throughout the life of the allograft: comprehensive multimodality review. Radiographics. 2019;39:1327–55. 1. Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), Recife, PE, Brasil 2. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil a. https://orcid.org/0000-0002-9813-3076 b. https://orcid.org/0000-0001-7037-4700 c. https://orcid.org/0000-0002-3226-8832 d. https://orcid.org/0000-0003-2989-117X e. https://orcid.org/0000-0002-0596-5827 f. https://orcid.org/0000-0003-0044-7278 Correspondência: Dr. Alexandre Makoto Minoda Rua das Pernambucanas, 315, Graças Recife, PE, Brasil, 52011-010 E-mail: alexandreminoda@hotmail.com Recebido para publicação em 17/7/2020 Aceito, após revisão, em 18/9/2020 |