ENSAIO ICONOGRÁFICO
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Autho(rs): Anthony Reis Mello Souzaa; Adham do Amaral e Castrob; Eduardo Kaiser Ururahy Nunes Fonsecac; Letícia Maria Araújo Oliveira Nunesd; Eduardo Baptistae; Luiz Guilherme de Carvalho Hartmann;f |
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Descritores: Joelho; Cartilagem; Ressonância magnética. |
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Resumo: INTRODUÇÃO
O tecido cartilaginoso reveste as diversas articulações do corpo e tem a função básica de absorver e distribuir melhor as cargas aplicadas. Tem como propriedades básicas a deformação plástica e a lubrificação articular. É rico em fibras de colágeno tipo II e é dividido em quatro camadas distintas de células (condrócitos)(1). O potencial de cicatrização da cartilagem articular é muito limitado, visto que, ao contrário da maioria dos tecidos do organismo, é avascular e, portanto, tem pobre resposta inflamatória/reparadora à lesão. No intuito de suprir esta limitação biológica, no decorrer dos anos, a cartilagem do joelho foi alvo de diversas pesquisas na tentativa de desenvolver técnicas cirúrgicas que estimulassem a cicatrização, restabelecessem a integridade ou mesmo a regeneração tecidual(1,2). No transcurso das pesquisas, ficou constatado que o defeito cartilaginoso é preenchido por fibrocartilagem (rica em fibras de colágeno tipo I), com propriedades biomecânicas diferentes da cartilagem hialina habitual. Visando a promover evolução favorável após o reparo cirúrgico, é decisivo o acompanhamento clinicorradiológico do paciente operado, para diagnosticar possíveis falhas no tratamento o mais precocemente possível(2). O presente ensaio tem por objetivos: ilustrar as principais técnicas cirúrgicas da cartilagem do joelho; identificar as sequências de ressonância magnética (RM) usualmente utilizadas na avaliação pós-operatória e os achados de imagem relevantes; e demonstrar técnicas complementares de imagem diagnóstica (mapa T2). Foram revisados e ilustrados casos contemplando as técnicas cirúrgicas de microperfuração, mosaicoplastia, reparo por regeneração utilizando células-tronco, fixação cirúrgica de fragmento condral e biomembrana(1–6). CONCEITOS INICIAIS Os objetivos principais do reparo cirúrgico da cartilagem femoropatelar são reduzir os sintomas do paciente, promover a cicatrização da cartilagem e prevenir ou retardar o aparecimento de osteoartrite. O reparo cirúrgico é especialmente importante para atletas profissionais(1). A artroscopia permanece como o padrão ouro para a avaliação da lesão da cartilagem e para o reparo cirúrgico dos seus defeitos. Todavia, é um procedimento invasivo, intrinsecamente associado a morbidade, e em geral é reservado para o tratamento após avaliação diagnóstica por imagem. Assim, a RM tem papel fundamental tanto na avaliação pré-operatória quanto pós-operatória(1,2). As sequências bidimensionais fast spin-eco ou turbo spin-eco fornecem excelente contraste entre os tecidos e tempos de aquisição mais rápidos. Fast spin-eco é o tipo de aquisição mais comumente usado para avaliação clínica de lesões de cartilagem, por isso faz parte do protocolo de imagem de cartilagem recomendado pela International Cartilage Repair Society(1,11). As aquisições mais comuns de RM para avaliação morfológica da cartilagem incluem as sequências ponderadas por densidade de prótons, as sequências com tempo de eco (TE) intermediário, e as ponderadas em T2 com ou sem supressão de gordura(1,11). As sequências com TE intermediário combinam a vantagem do contraste da densidade de prótons com a ponderação T2 usando TE de 33 a 60 ms. Desse modo, é possível obter maior intensidade de sinal na cartilagem do que as sequências ponderadas em T2 padrão, com consequente melhor diferenciação entre cartilagem e osso subcondral, e menor suscetibilidade aos efeitos de ângulo mágico(1,11). Sequências ponderadas em T2 sem supressão de gordura oferecem excelente contraste entre as superfícies cartilaginosas e o líquido sinovial, porém, a avaliação da cartilagem é prejudicada em razão do sinal baixo e do pouco contraste entre cartilagem e osso subcondral. As técnicas de supressão de gordura proporcionam maior contraste na interface entre cartilagem e osso subcondral(1,11). CLASSIFICAÇÃO DAS LESÕES CONDRAIS Classificações foram propostas para as lesões condrais. Em essência, os parâmetros avaliados são similares entre elas (profundidade da lesão e acometimento do osso subcondral). Na prática, nos atemos à descrição da lesão sem mencionar classificação alguma no laudo. Outerbridge modificada A classificação de Outerbridge modificada se propõe a avaliar a condromalácia femoropatelar nos seus aspectos de imagem pela RM, relacionando-a com a macroscopia e com a artroscopia, classificando em cinco graus, de 0 (zero) a IV (quatro) (Figura 1)(7,8). Noyes modificada Esta classificação divide o estado da cartilagem em quatro graus pela RM, de 0 (zero) a 3 (três)(12): grau 0 – normal; grau 1 – sinal aumentado em T2; grau 2a – defeito condral superficial de espessura parcial < 50% da espessura total; grau 2b – defeito condral profundo de espessura parcial > 50% da espessura total; grau 3 – defeito condral acometendo totalmente a espessura condral. Classificação da International Cartilage Repair Society A International Cartilage Repair Society classifica a cartilagem em cinco graus, com subdivisões(13). Normal: grau 0. Quase normal: grau 1A – lesões superficiais/amolecimento; grau 1B – lesões superficiais/ amolecimento e/ou fissuras ou fendas superficiais. Anormal: grau 2 – extensão < 50% da espessura. Lesão grave: grau 3A – extensão > 50% da espessura; grau 3B – extensão até a camada calcificada; grau 3C – extensão até a superfície do osso subcondral (sem o acometer); grau 3D – inclui abaulamentos. Lesão muito grave: grau 4A – penetra o osso subcondral, mas não no diâmetro total do defeito; grau 4B penetração em todo o diâmetro do defeito. TÉCNICAS CIRÚRGICAS DE REPARO DA CARTILAGEM FEMOROPATELAR Serão ilustradas, a seguir, as principais técnicas cirúrgicas de reparo da cartilagem femoropatelar, com apresentação de casos de: microperfuração (estimulação da medula óssea) (Figuras 2 e 3); mosaicoplastia (enxerto osteocondral) (Figuras 4 e 5); reparo por regeneração por meio de células-tronco (Figuras 6 e 7); fixação cirúrgica de fragmento condral (Figura 8); biomembrana (Figuras 9 e 10). Figura 2. Ilustração dos passos da microperfuração. Debridamento para criar uma margem estável na cartilagem; curetagem da camada de cartilagem calcificada; penetração do osso subcondral com um furador para produzir comunicações com a medula óssea; o coágulo resultante contém células-tronco mesenquimais, que tratam o defeito pela formação de fibrocartilagem. Figura 3. Homem de 26 anos submetido à microperfuração. Imagens de RM ponderadas em T2 com saturação de gordura. Imagem axial (A) do pré-operatório mostra lesão condral profunda na zona central da tróclea femoral (seta). Controle após sete meses do procedimento: as imagens em sagital (B) e axial (C) mostram os trajetos das microperfurações associadas a edema subcondral (setas) e tecido fibrocartilaginoso preenchendo o local da lesão condral. Figura 4. Ilustração mostrando a técnica da mosaicoplastia. No início, para estabilizar as margens, ocorre o debridamento da cartilagem danificada. Cilindros osteocondrais doados são colhidos das regiões de menor suporte de peso no joelho. São criados recipientes cilíndricos no local de defeito da cartilagem, os quais recebem os enxertos osteocondrais. Figura 5. Homem de 39 anos submetido à mosaicoplastia artroscópica na faceta lateral da patela, com evolução favorável. Cortes axiais de RM ponderadas em T2 com saturação de gordura obtidas um ano após o procedimento demonstram defeito quase completamente preenchido, com apenas uma pequena incongruência central na superfície articular (A – seta) e mínima irregularidade osteocondral no local de doação do enxerto na faceta lateral da tróclea femoral (B – seta). Figura 6. Ilustração do reparo por regeneração com células-tronco. A primeira cirurgia é um procedimento artroscópico. A cartilagem é colhida da área de menor suporte de peso. O tecido é preparado e os condrócitos liberados são expandidos. Esse processo pode ocorrer de duas maneiras: em cultura de alginato 3D ou em placa sintética, para transplante autólogo de condrócito associado à matriz. A segunda cirurgia é um procedimento aberto. Inicialmente a cartilagem danificada é debridada. Os condrócitos cultivados podem ser implantados como uma suspensão de alta densidade de condrócitos expandidos sob um flap periosteal ou de colágeno. Há outra técnica em que os condrócitos são liberados no defeito, pela placa cultivada. Não há necessidade de suturas. MACT, transplante autólogo de condrócitos associado à matriz; c-ACI, implante autólogo de condrócitos em colágeno; p-ACI, implante autólogo de condrócitos periosteal. Figura 7. Mulher de 25 anos submetida à injeção artroscópica de células-tronco mesenquimais autólogas na faceta medial da patela. Imagens de RM ponderadas em T2 com saturação de gordura mostram, em corte sagital (A), a lesão pré-operatória, com fissuras condrais profundas (seta). Uma semana após o procedimento (B) nota-se edema ósseo e de partes moles adjacentes à zona de reparo (seta), com pequeno derrame articular. Após quatro meses (C) observa-se tecido fibrocartilaginoso levemente irregular na zona de reparo (seta), com fissuras profundas, sem edema subcondral. Figura 8. Jovem masculino, 10 anos, submetido à fixação cirúrgica de fragmento condral. Imagem de RM ponderada em T2 com saturação de gordura mostra a lesão pré-operatória no corte coronal (A), com acometimento osteocondral e edema associado da medula óssea, sem destacamentos na zona central da área de carga do côndilo femoral medial (seta). Após oito meses do procedimento (B) nota-se imagem linear de alto sinal (seta) na interface cartilagem/osso subcondral na porção interna do foco da lesão, representando tecido de granulação. Imagem linear de baixo sinal na margem mais anterior da cartilagem no foco da lesão osteocondral, sítio pregresso de fissura, inferindo coaptação com possível tecido de fibrocartilagem. Figura 9. Ilustração do procedimento de membrana biológica. No primeiro tempo do procedimento artroscópico a cartilagem instável e danificada é removida até atingir margens regulares. Uma impressão exata do defeito é feita usando uma lâmina-modelo de alumínio estéril. A lâmina-modelo é retirada e colocada sobre a membrana biológica, que é então recortada nos moldes do modelo. No segundo tempo do procedimento artroscópico o osso subcondral na base da lesão é perfurado da periferia da lesão em direção ao centro. Uma cola de fibrina é usada diretamente no osso subcondral ao redor das perfurações. A membrana, já recortada no tamanho e formato da lesão, é então colocada no defeito com a face porosa em contato com a superfície óssea. Figura 10. Homem, 31 anos, submetido ao procedimento para colocação de membrana biológica. Imagem pós-operatória de RM ponderada em T2 com saturação de gordura, no corte axial (A), mostra condropatia patelar caracterizada por focos de alteração de sinal esparsos, discreto afilamento com irregularidades superficiais na faceta medial e fissura profunda no terço médio do vértice, associada a pequeno edema ósseo subcondral. Sinais de condroplastia no sulco (seta) e início das facetas da tróclea femoral, com delgada membrana colágena e tecido fibrocartilaginoso irregular e afilado recobrindo o osso subcondral, que se encontra irregular e com focos de edema. Após dois meses, imagem ponderada em T1 (B) mostra a área de junção da membrana com a cartilagem adjacente apresentando leve alteração de sinal (seta). Na imagem pós-operatória devem-se avaliar: grau de reparo e preenchimento do defeito em relação à cartilagem adjacente; integração com a cartilagem adjacente; integração do transplante ao osso subcondral; superfície da área de reparo; constituição e sinal do tecido condral reparado comparado à cartilagem normal adjacente; integridade do osso subcondral, avaliando a presença de edema, cistos e tecido de granulação; presença de osteófitos planos; e presença de derrame articular(11). TÉCNICAS COMPLEMENTARES DE IMAGEM DIAGNÓSTICA Mapa T2 O mapa T2 permite detectar alterações bioquímicas e microestruturais na matriz cartilaginosa extracelular, antes mesmo de ocorrerem alterações morfológicas grosseiras. Pode ser utilizada de forma complementar às imagens de RM para, potencialmente, definir a qualidade biomecânica do reparo da cartilagem(9). Embora existam mais dados na literatura sobre esta técnica em alteração condral degenerativa não operada, diversos estudos já validaram este método para avaliação pós-operatória da cartilagem do joelho(9–11). Entre as vantagens, além do que já foi citado, há a dispensa de injeção de contraste intravenoso e a fácil implementação nos aparelhos. Suas desvantagens incluem um tempo maior usando sequências spin-eco/ multieco e não conseguir avaliar a cartilagem calcificada na junção osteocondral(9–11). A Figura 11 demonstra a estratificação da cartilagem de um paciente sem alterações, e as Figuras 12 e 13 demonstram casos de pacientes que foram submetidos a manipulação cirúrgica. Figura 11. Imagem axial de RM do mapa T2 mostra a estratificação normal da superfície da cartilagem femoropatelar. Figura 12. Sequência de mapa T2 no corte axial demonstra estratificação na cartilagem da região onde foi feita a manipulação condral (seta), semelhante à cartilagem hialina da tróclea femoral saudável adjacente. Figura 13. Paciente (Figura 5) submetido a mosaicoplastia com evolução favorável. Mapa T2 mostra a estratificação da superfície da cartilagem na zona de reparo (seta), similar à cartilagem hialina normal na faceta patelar adjacente. Outras técnicas Outras técnicas composicionais disponíveis na literatura são(10,11): mapa T1 rho ou spin lock, delayed gadolinium-enhanced MRI of cartilage, GAG chemical exchange saturation transfer imaging, sodium imaging, diffusion weighted imaging e ultrashort TE imaging. CONCLUSÃO Os radiologistas devem estar familiarizados com as principais técnicas e com a avaliação por imagem dos reparos de cartilagem, as quais foram demonstradas no presente estudo por meio de uma revisão ilustrativa de casos didáticos das técnicas cirúrgicas, com as sequências de RM e os aspectos de imagem de cada caso mediante exames convencionais e por técnicas complementares de imagem diagnóstica (mapa T2). REFERÊNCIAS 1. Guermazi A, Roemer FW, Alizai H, et al. State of the art: MR imaging after knee cartilage repair surgery. Radiology. 2015;277:23–43. 2. Blackman AJ, Smith MV, Flanigan DC, et al. 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Further studies on the etiology of chondromalacia patellae. J Bone Joint Surg Br. 1964;46:179–90. 9. MacKay JW, Low SBL, Smith TO, et al. Systematic review and meta- analysis of the reliability and discriminative validity of cartilage compositional MRI in knee osteoarthritis. Osteoarthritis Cartilage. 2018;26:1140–52. 10. Guermazi A, Alizai H, Crema MD, et al. Compositional MRI techniques for evaluation of cartilage degeneration in osteoarthritis. Osteoarthritis Cartilage. 2015;23:1639–53. 11. Hayashi D, Li X, Murakami AM, et al. Understanding magnetic resonance imaging of knee cartilage repair: a focus on clinical relevance. Cartilage. 2018;9:223–36. 12. Gold GE, Chen CA, Koo S, et al. Recent advances in MRI of articular cartilage. AJR Am J Roentgenol. 2009;193:628–38. 13. Dwyer T, Martin CR, Kendra R, et al. Reliability and validity of the arthroscopic International Cartilage Repair Society classification system: correlation with histological assessment of depth. Arthroscopy. 2017;33:1219–24. Departamento de Imagem – Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil a. https://orcid.org/0000-0002-7113-6189 b. https://orcid.org/0000-0003-0649-3662 c. https://orcid.org/0000-0002-0233-0041 d. https://orcid.org/0000-0002-4079-3813 e. https://orcid.org/0000-0002-7167-194X f. https://orcid.org/0000-0003-4854-9193 Correspondência: Dr. Adham do Amaral e Castro Departamento de Imagem – Hospital Israelita Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627, Vila Leonor São Paulo, SP, Brasil, 05652-901 E-mail: adham.castro@gmail.com Recebido para publicação em 7/2/2019 Aceito, após revisão, em 2/7/2019 Publicado em 30/04/2020 |