ARTIGOS ORIGINAIS
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Autho(rs): Gabriel Cleve Nicolodi1; Cesar Rodrigo Trippia2; Maria Fernanda F. S. Caboclo2; Francisco Gomes de Castro1, Wagner Peitl Miller1; Raphael Rodrigues de Lima1; Leandro Tazima1; Jamylle Geraldo1 |
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Descritores: Perfuração intestinal; Intestino delgado; Corpo estranho; Abdome agudo; Tomografia computadorizada. |
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Resumo: INTRODUÇÃO
A ingestão acidental de corpo estranho junto com a alimentação é um problema clínico comum nos serviços de atendimento de emergência. Embora a maioria dos corpos estranhos deglutidos transite no trato gastrintestinal sem consequências num período de até uma semana(1), em até 1% dos casos ocorre perfuração em algum ponto do trajeto gastrintestinal(2). A perfuração do trato gastrintestinal é mais comum no caso de corpos estranhos pontiagudos e alongados, como espinha de peixe, osso de galinha e palito de dente, ocorrendo principalmente no intestino delgado, em pontos de angulações ou estreitamentos fisiológicos(3). A apresentação clínica é variada e muitas vezes representa um desafio diagnóstico. Os pacientes geralmente não referem a ingestão de um corpo estranho, o que retarda o diagnóstico e cria confusão com outras possibilidades diagnósticas. Este trabalho tem por objetivo descrever quatros casos de perfuração intestinal por corpo estranho alimentar e associar os achados tomográficos aos descritos na literatura. MATERIAIS E MÉTODOS Foram revisados quatro casos de perfuração intestinal por corpo estranho alimentar deglutido, atendidos pelo serviço de emergência no período de um ano, de julho de 2012 a junho de 2013, todos no intestino delgado, confirmados por cirurgia. Todos os pacientes se apresentaram com quadro de abdome agudo no momento do diagnóstico. Foram dois casos de perfuração por espinha de peixe, um por osso de galinha e um por palito de dente, e no momento da apresentação nenhum dos pacientes referiu a possibilidade de ingestão de corpo estranho. Todos os pacientes foram investigados por rotina de abdome agudo e tomografia computadorizada (TC) do abdome. RESULTADOS A faixa etária dos pacientes variou de 64 a 83 anos, com média de idade de 71,5 anos, sendo dois pacientes do sexo masculino e dois do sexo feminino. Em nenhum dos casos o corpo estranho foi identificado pela radiografia simples (Figura 1). Em três pacientes – dois com perfuração por espinha de peixe e um por osso de galinha – o corpo estranho, por apresentar densidade cálcica, foi identificado na TC, juntamente com os sinais de perfuração intestinal (corpo estranho transfixando a parede intestinal, distensão da luz intestinal com estase líquida e espessamento de sua parede, densificação da gordura mesenterial, e gás livre no peritônio) (Figura 2). No caso de perfuração por palito de dente, o diagnóstico inicial foi plastrão inflamatório por provável perfuração intestinal de origem indefinida, e o palito não foi identificado na TC durante a análise inicial devido à sua baixa densidade, porém, na avaliação retrospectiva após o resultado da cirurgia, ele pôde ser individualizado (Figura 3). Três dos pacientes utilizavam prótese dentária e em um deles o corpo estranho perfurou o intestino em uma área de estreitamento secundário à presença de um tumor neuroendócrino na parede intestinal (Figura 4). Figura 1. Paciente do sexo feminino, 64 anos. A: Radiografia simples do abdome não identificou a presença do corpo estranho. B: TC do abdome demonstrou corpo estranho pontiagudo (seta), correspondendo a espinha de peixe, perfurando a parede intestinal em segmento ileal na cavidade pélvica, associado a espessamento da parede intestinal e densificação da gordura mesentérica adjacente. Figura 2. Paciente do sexo masculino, 68 anos. A: TC do abdome mostrando corpo estranho radiopaco pontiagudo em segmento de íleo distal (seta), associado a espessamento da parede da alça, em paciente com dor abdominal aguda. B: Na cirurgia foi ressecado o segmento intestinal e identificado um fragmento de osso de galinha (seta) perfurando a parede intestinal. Figura 3. Paciente do sexo feminino, 83 anos. TC do abdome mostrando plastrão inflamatório na cavidade pélvica. A cirurgia confirmou perfuração intestinal por palito de dente, o qual pôde ser detectado retrospectivamente como uma imagem linear com densidade um pouco maior que a do tecido circunjacente, transfixando a parede intestinal (seta). Figura 4. Paciente do sexo masculino, 74 anos. TC do abdome identificando corpo estranho transfixando a parede da alça ileal na região pélvica (seta em A), com espessamento da parede da alça, densificação da gordura mesenterial e gás livre no peritônio, indicando perfuração intestinal. Também se observa lesão nodular de partes moles projetando-se para a luz do intestino no ponto de impactação do corpo estranho (seta em B). A cirurgia demonstrou a presença de tumor neuroendócrino da parede intestinal, determinando estreitamento da luz, onde ocorreu a perfuração por espinha de peixe. Em nossa casuística, todos os pacientes apresentaram espessamento das paredes da alça intestinal e densificação da gordura mesentérica, em três foi identificado o corpo estranho transfixando a parede intestinal, e em apenas um foi demonstrado gás na cavidade peritoneal. DISCUSSÃO A perfuração intestinal geralmente é ocasionada por corpos estranhos alimentares alongados e pontiagudos, como espinha de peixe, ossos de galinha e palitos de dente, sendo mais frequente em áreas de angulação ou estreitamento fisiológico do trato digestivo(3), ocorrendo em até 83% dos casos nas alças ileais(4). Espinha de peixe é a causa mais comum de perfuração do trato gastrintestinal, por ingestão acidental(5), porém depende dos hábitos alimentares de cada população. Geralmente, esses pacientes se apresentam nos serviços de emergência com quadro de abdome agudo, que pode incluir dor abdominal, náusea, vômitos, febre, peritonite, abscesso, fístula, obstrução intestinal e hemorragia gastrintestinal(6). Os pacientes geralmente não relatam a possibilidade de ingestão de um corpo estranho, o qual, associado a um quadro clínico muitas vezes confuso, faz com que o diagnóstico seja um desafio, e não raramente, tardio. A população mais suscetível a ingestão de corpo estranho são os idosos, usuários de dentaduras, alcoólatras e pacientes psiquiátricos(6). A presença de dentaduras reduz a sensibilidade tátil do palato, reduzindo, desta maneira, a capacidade de perceber pequenos objetos na cavidade oral(2), estando relacionada a até 80% dos casos de ingestão acidental de corpo estranho alimentar(5). No presente trabalho, três dos quatro pacientes usavam dentaduras. A detecção dos corpos estranhos deglutidos raramente é feita pelo estudo radiográfico convencional, pois eles geralmente possuem pequenas dimensões e baixa radiopacidade(7), e muitas vezes se tornam ocultos pela sobreposição dos gases intestinais. Um estudo prospectivo com 358 pacientes que deglutiram espinha de peixe revelou que a radiografia simples do abdome apresentou sensibilidade de apenas 32%(8). A TC possui um papel importante na avaliação de pacientes com abdome agudo, sendo considerado um método com alta sensibilidade para identificação de perfuração intestinal. A acurácia da TC para identificação do local de perfuração intestinal é de cerca de 86%, sendo muito importante para o cirurgião conhecer o ponto exato da perfuração para programar a cirurgia(9). Também possui sensibilidade alta para a detecção de corpos estranhos pouco calcificados e pequenos, como espinha de peixe e pequenos fragmentos de osso de galinha. Pode detectar corpo estranho não calcificado (por exemplo: palito de dente) e identificar áreas de estreitamento do tubo digestivo, as quais predispõem à impactação do corpo estranho (por exemplo: áreas estenóticas inflamatórias ou tumorais). Com relação aos palitos de dente, estudos prévios demonstraram que a sua atenuação pode variar em relação ao teor de ar e líquido no interstício da madeira. Quando ingerido, costuma estar seco e predominantemente preenchido por ar, tendo um coeficiente de atenuação menor, e após alguns dias, com a absorção de fluidos corporais, sofre aumento de sua atenuação(10,11). No presente trabalho, um dos pacientes apresentou a perfuração intestinal por espinha de peixe sobre uma área de estreitamento consequente a um tumor neuroendócrino da parede da alça intestinal. Muitos trabalhos têm estabelecido a TC como um método de escolha para a investigação de pneumoperitônio(12), sendo este um fator importante na sensibilidade do método em identificar perfuração de víscera oca. Com o advento da TC multislice e a possibilidade de realizar cortes mais finos, houve melhora na sensibilidade deste método(5). O uso de contraste por via oral durante a TC pode dificultar a detecção do corpo estranho radiopaco. A região de perfuração intestinal pode ser identificada na TC como um segmento intestinal de paredes espessadas, edema da gordura mesenterial adjacente e gás na cavidade peritoneal, este muitas vezes limitado ao ponto da perfuração. Pelo fato de a perfuração ser causada pela impactação e erosão progressiva do corpo estranho contra a parede intestinal, o local da perfuração geralmente é recoberto por fibrina, omento e outras alças intestinais, o que limita a passagem de grande quantidade de gás para a cavidade peritoneal(13). Na nossa série, o sinal mais frequente indicativo de perfuração intestinal foi o achado de segmento intestinal com parede espessada no ponto de impactação do corpo estranho, associado a edema da gordura mesenterial adjacente. Em apenas um dos casos foi encontrado gás no peritônio adjacente ao ponto de perfuração, condizente com os dados da literatura. Obstrução intestinal é achado infrequente e foi encontrado em um dos casos deste trabalho, explicado por um quadro de perfuração não suspeitada, com tempo mais prolongado de evolução, resultando em bloqueio e plastrão inflamatório ao redor da área da perfuração. Os achados de imagem na TC são indistinguíveis de obstrução intestinal por outras causas, como brida ou tumores, resultando em distensão e estase líquida nas alças intestinais a montante (diâmetro da alça > 2,5 cm), com identificação de uma área de transição de calibre entre as alças dilatadas proximais e as alças colabadas distais ao ponto de obstrução(14). Assim como a obstrução, a presença de hemorragia digestiva também pode ocorrer de forma infrequente, secundária a erosão da parede intestinal pelo corpo estranho ao atingir um vaso nutridor. Apendicite aguda e diverticulite de Meckel por impactação de um corpo estranho são muito raras, porém alguns casos já foram descritos na literatura(15,16). A conduta terapêutica depende da localização do corpo estranho no trato digestivo e da presença ou não de complicações como perfuração, hemorragia e obstrução. Enquanto os corpos estranhos localizados no esôfago e estômago são preferencialmente retirados por via endoscópica, os localizados no intestino delgado são tratados cirurgicamente, com a ressecção segmentar da alça comprometida(17,18). CONCLUSÃO Embora a deglutição acidental de um corpo estranho alimentar seja frequente, a perfuração intestinal é um achado incomum. Porém, quando ocorre, se manifesta por um quadro de abdome agudo e constitui um desafio diagnóstico nos serviços de emergência. A TC veio contribuir significativamente para o seu diagnóstico e é o melhor método de imagem para esta avaliação, capaz de identificar corpos estranhos pouco radiopacos, permitindo a localização exata da perfuração e orientar com segurança o tratamento cirúrgico. Os achados de imagem que sugerem a perfuração intestinal são a identificação de um segmento intestinal de paredes espessadas, edema da gordura mesenterial adjacente, e menos frequentemente, a presença de gás na cavidade peritoneal geralmente limitada ao ponto de perfuração. Na maioria dos casos o paciente não relata a possibilidade de ingestão do corpo estranho, porém, o diagnóstico deve ser suspeitado em pacientes idosos e em portadores de dentaduras com quadro de abdome agudo de causa desconhecida. REFERÊNCIAS 1. McCanse DE, Kurchin A, Hinshaw JR. Gastrointestinal foreign bodies. 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Hainaux B, Agneessens E, Bertinotti R, et al. Accuracy of MDCT in predicting site of gastrointestinal tract perforation. AJR Am J Roentgenol. 2006;187:1179–83. 10. Peterson JJ, Bancroft LW, Kransdorf MJ. Wooden foreign bodies: imaging appearance. AJR Am J Roentgenol. 2002;178:557–62. 11. Ginsberg LE, Williams DW 3rd, Mathew VP. CT in penetrating craniocervical injury by wooden foreign bodies: reminder of a pitfall. AJNR Am J Neuroradiol. 1993;14:892–5. 12. Stapakis JC, Thickman D. Diagnosis of pneumoperitoneum: abdominal CT vs upright chest film. J Comput Assist Tomogr. 1992; 16:713–6. 13. Pinero Madrona A, Fernández Hernández JA, Carrasco Prats M, et al. Intestinal perforation by foreign bodies. Eur J Surg. 2000;166:307–9. 14. Silva AC, Pimenta M, Guimarães LS. Small bowel obstruction: what to look for. Radiographics. 2009;29:423–39. 15. Wong JH, Suhaili DN, Kok KY. Fish bone perforation of Meckel's diverticulum: a rare event? Asian J Surg. 2005;28:295–6. 16. Yagci G, Cetiner S, Tufan T. Perforation of Meckel's diverticulum by a chicken bone, a rare complication: report of a case. Surg Today. 2004;34:606–8. 17. Souza FO, Aita JF, Schmidt MK. Ingestão de corpo estranho. Rev Col Bras Cir. 1999;XXVI:246–8. 18. Sarmast AH, Showkat HI, Patloo AM, et al. Gastrointestinal tract perforations due to ingested foreign bodies; a review of 21 cases. BJMP. 2012;5:a529. 1. Médicos Residentes em Radiologia do Hospital São Vicente – Funef, Curitiba, PR, Brasil 2. Médicos Radiologistas, Preceptores do Hospital São Vicente – Funef, Curitiba, PR, Brasil Endereço para correspondência: Dr. Gabriel Cleve Nicolodi Hospital São Vicente – Funef Rua Vicente Machado, 401, Centro Curitiba, PR, Brasil, 80420-010 E-mail: gabrielnicolodi@gmail.com Recebido para publicação em 25/6/2015. Aceito, após revisão, em 3/9/2015. Trabalho realizado no Hospital São Vicente – Funef, Curitiba, PR, Brasil. |