Radiologia Brasileira - Publicação Científica Oficial do Colégio Brasileiro de Radiologia

AMB - Associação Médica Brasileira CNA - Comissão Nacional de Acreditação
Idioma/Language: Português Inglês

Vol. 49 nº 2 - Mar. / Abr.  of 2016

RELATO DE CASO
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Page(s) 122 to 125



Doença relacionada à IgG4: pancreatite autoimune e manifestações extrapancreáticas

Autho(rs): Daniel Alvarenga Fernandes1; Ricardo Yoshio Zanetti Kido2; Ricardo Hoelz de Oliveira Barros3; Daniel Lahan Martins4; Thiago José Penachim4; Nelson Marcio Gomes Caserta5

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Texto em Português English Text

Descritores: Pancreatite; Doenças autoimunes; Pâncreas; Tomografia computadorizada; Ressonância magnética.

Keywords: Pancreatitis; Autoimmune diseases; Pancreas; Computed tomography; Magnetic resonance imaging.

Resumo:
Apresentamos um caso de doença relacionada à IgG4, com acometimento pancreático e extrapancreático biliar e renal. Dada a relevância dos métodos de imagem para seu diagnóstico e diferenciação com o adenocarcinoma pancreático, ressaltamos os principais achados abdominais na tomografia computadorizada e ressonância magnética desta doença autoimune sistêmica recentemente reconhecida.

Abstract:
We present a case of immunoglobulin G4 (IgG4)-related disease with pancreatic and extrapancreatic involvement, including the biliary and renal systems. Given the importance of imaging methods for the diagnosis of IgG4-related disease and its differentiation from pancreatic adenocarcinoma, we emphasize important abdominal computed tomography and magnetic resonance imaging findings related to this recently recognized systemic autoimmune disease.

INTRODUÇÃO

A doença relacionada à imunoglobulina G4 (DRIgG4) é uma desordem autoimune sistêmica com manifestações abdominais pancreáticas e extrapancreáticas, podendo acometer vias biliares, rins, linfonodos, próstata e retroperitônio, incidindo principalmente na 6ª e 7ª décadas de vida(1,2). A completa gama do envolvimento visceral ainda está sendo descrita, com relatos de acometimento de glândulas salivares, tecidos periorbitários, meninges, pulmões, aorta, pericárdio, mama, tireoide e pele. Como mais frequentemente acomete o pâncreas, a DRIgG4 muitas vezes apresenta-se clinicamente com desconforto abdominal, icterícia obstrutiva e perda ponderal, sendo importante o diagnóstico diferencial com o adenocarcinoma pancreático(3,4).

Os critérios diagnósticos da DRIgG4 baseiam-se em achados clínicos, radiológicos e anatomopatológicos. Dada a relevância dos métodos de imagem para o diagnóstico, relatamos um caso de DRIgG4, ressaltando os principais achados na tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM).


RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 49 anos de idade, apresentando-se com prurido, desconforto abdominal, icterícia, colúria, hipocolia fecal e emagrecimento de 13 kg em cinco meses. Ao exame físico mostrava-se ictérico, afebril, com abdome flácido e doloroso à palpação no flanco direito. Antecedentes de tabagismo e etilismo. Exames laboratoriais mostraram aumento de enzimas hepáticas e bilirrubinas com padrão obstrutivo, amilase e lipase séricas dentro dos parâmetros normais.

Após ultrassonografia mostrando dilatação das vias biliares, a colangiopancreatografia endoscópica retrógrada revelou estenose de colédoco médio, sendo realizada papilotomia endoscópica e colocação de prótese biliar. O esfregaço do ducto biliar foi negativo para neoplasia.

Foram realizadas TC e RM do abdome, que demonstraram aumento difuso do pâncreas, com perda das lobulações e rugosidade características, halo peripancreático de hipocontrastação na cauda, além de nódulos renais também hipocontrastantes e com limites parcialmente definidos (Figuras 1 e 2). Colangiorressonância mostrou dilatação de vias biliares (Figura 3).


Figura 1. TC de abdome com contraste, fase nefrográfica (axial). A: Aumento difuso do pâncreas (seta contínua). Prótese biliar no colédoco. São ainda caracterizados nódulos hipocontrastantes na cortical de ambos os rins (setas tracejadas). B: Retração e obliteração da cauda pancreática, com halo de hipocontrastação (seta contínua), além dos nódulos renais.


Figura 2. RM de abdome, axial. A: Ponderação em T1, sem contraste. Pâncreas difusamente aumentado, com perda da rugosidade característica e com leve hipossinal (seta contínua). Nódulo renal com hipossinal. B: Ponderação em T1, fase portal após contraste. Halo peripancreático hipocontrastante (seta contínua), além dos nódulos renais com limites parcialmente definidos, também hipocontrastantes. C: Ponderação em T2. Pâncreas difusamente aumentado, encurtamento da cauda e perda da rugosidade característica (pâncreas em salsicha), afilamento difuso e irregular do ducto pancreático principal (seta contínua), nódulos renais com limites parcialmente definidos com hipossinal. D: Restrição da difusão em todo o pâncreas, com valor de ADC de 0,839 × 10–3 mm2/s (seta contínua), bem como nos nódulos renais (setas tracejadas).


Figura 3. Colangiorressonância mostra dilatação das vias biliares até a transição para o colédoco intrapancreático (seta).



Com a suspeita de DRIgG4, foram realizadas biópsias renal e pancreática, que mostraram denso infiltrado inflamatório misto linfoplasmocitário, sem indícios de neoplasia epitelial, com IgG4 positiva na maioria das células plasmocitárias. A associação dos achados de imagem e histopatologia confirmou tratar-se de DRIgG4, sendo iniciada corticoterapia, com remissão significativa do quadro clínico e radiológico após cerca de 16 semanas (Figura 4). O paciente permanece em seguimento ambulatorial, com boa evolução.


Figura 4. RM de abdome após corticoterapia, axial. A: T1, fase portal após contraste. Pâncreas de dimensões normalizadas, sem o halo peripancreático antes observado (seta contínua). Não foram individualizados nódulos renais em T1. B: Ponderação em T2. Pâncreas de dimensões normais, sem alterações no ducto principal antes vistas (seta contínua). Permanecem discretos nódulos vistos apenas em T2 (setas tracejadas), de menores dimensões em relação aos observados pré-corticoterapia.



DISCUSSÃO

A DRIgG4 é uma desordem recentemente reconhecida e descrita como uma entidade clinicopatológica específica em 2003(1). Caracteriza-se por lesões com reação inflamatória associada a fibrose e infiltração linfoplasmocitária rica em plasmócitos tissulares IgG4 positivos, compondo um espectro de doenças fibroproliferativas, das quais fazem parte a pancreatite autoimune, a colangite, a sialadenite e mesenterite esclerosantes, o pseudotumor inflamatório e a fibrose retroperitoneal.

Segundo o consenso internacional de critérios diagnósticos de pancreatite autoimune, existem dois subtipos específicos (tipos 1 e 2) com possível diferenciação baseada em cinco critérios principais: a) alterações de imagem do parênquima e ducto pancreático; b) sorológicos (IgG4, IgG anticorpos antinucleares); c) acometimento extrapancreático; d) histologia; e) resposta à corticoterapia(5). O diagnóstico dos tipos pode ser definitivo ou provável, e em muitos casos tal distinção pode não ser possível. O tipo 1, categoria na qual o presente caso tem seu diagnóstico provável, também conhecido como pancreatite esclerosante linfoplasmocitária, é a manifestação mais comum da DRIgG4, podendo haver acometimento difuso, focal ou multifocal pancreático. No acometimento difuso, mais frequente, além do aumento difuso do órgão, nota-se obliteração dos contornos com perda das lobulações e rugosidade características ("pâncreas em salsicha"), aspecto causado pelo infiltrado linfoplasmocitário e flebite obliterativa da DRIgG4. À RM, o pâncreas mostra-se discretamente hiperintenso em T2 e hipointenso em T1, podendo haver fino halo de hipossinal em T1 e T2. Após contraste, nota-se impregnação deste, homogênea, discreta e tardia, com fino halo peripancreático com hipocontrastação, vista em 16-80% dos casos, refletindo alterações inflamatórias e fibróticas nos tecidos peripancreáticos, além de estenose irregular do ducto pancreático principal(2-4), alterações estas encontradas no caso apresentado. No acometimento focal ou multifocal, há lesões relativamente bem delimitadas, com estenose ductal associada e dilatação a montante(1).

A pancreatite autoimune pode simular adenocarcinoma, principalmente quando a doença limita-se ao segmento cefálico, o que ocorre em cerca de 80% das vezes. A diferenciação entre as duas entidades pode ser feita pela visualização do ducto principal penetrando no interior da massa, presente na pancreatite e ausente na neoplasia(2-4), menor impregnação pelo contraste no adenocarcinoma em relação à pancreatite(3), e valores de coeficiente aparente de difusão (ADC) mais baixos na pancreatite em relação ao adenocarcinoma pancreático, tendo sido sugerido um possível ponto de corte no valor de ADC (1,075 × 10-3 mm2/s) na diferenciação entre estas duas entidades(6). A forma difusa, por sua vez, tem como principal diferencial a pancreatite aguda; na DRIgG4 ocorre densificação peripancreática mínima ou ausente, ausência de necrose gordurosa e presença do halo peripancreático. Na grande maioria dos casos, entretanto, a diferenciação exige associação de critérios clínicos, laboratoriais, imaginológicos e histológicos(2-4).

Em relação às manifestações extrapancreáticas, a árvore biliar é o local mais comum de acometimento, podendo ocorrer espessamento da via biliar, estenose, irregularidade e dilatação a montante, sendo a porção intrapancreática o local mais afetado(1-4). Estes achados, entretanto, são semelhantes aos encontrados na colangite esclerosante primária (CEP), sendo um desafio o diagnóstico diferencial destas entidades. Pacientes com CEP são geralmente menos sintomáticos, equanto a colangite esclerosante relacionada à IgG4 tem apresentação mais aguda, com menor duração. Na CEP, o acometimento é multifocal, em curtos segmentos envolvendo ductos biliares intra- ou extra-hepáticos, com alternância de segmentos normais e levemente dilatados com aparência "em contas de rosário", ao passo que na colangite esclerosante relacionada à IgG4 as constrições tipicamente afetam um longo segmento e são contínuas com a dilatação pré-estenótica(2-4). Desta forma, diante deste desafio, o consenso americano recomenda a dosagem sérica de IgG4 em todo paciente com provável CEP, no intuito de excluir colangite esclerosante relacionada à IgG4(7).

O acometimento renal ocorre em até um terço dos pacientes, sendo geralmente múltiplo e bilateral, podendo apresentar-se como nódulos corticais arredondados ou "em cunha", pequenas lesões periféricas corticais, massas renais (lesões pseudotumorais) ou acometimento da pelve renal. À TC contrastada, tipicamente são lesões hipodensas, apresentando leve impregnação nas fases tardias. À RM, possuem iso/hipossinal nas sequências ponderadas em T1 e hipossinal nas sequências ponderadas em T2(2,8). Tais manifestações por imagem refletem características histopatológicas que incluem infiltração linfoplasmocitária do interstício renal, com número aumentado de células plasmáticas IgG4-positivas, e a presença de fibrose(2,8). A associação de manifestações pancreáticas e extrapancreáticas auxilia ainda mais o diagnóstico da DRIGg4, como no caso apresentado.

Após melhora clínica com corticoterapia, o seguimento destes pacientes é necessário, tendo sido encontrado um maior risco relativo de câncer no ano subsequente ao diagnóstico, incluindo gástrico (o mais comum) e outros como pulmão, próstata, cólon, linfoma não-Hodgkin, ducto biliar e tireoide(9). Apesar dos estudos crescentes, a história natural e o prognóstico em longo prazo da DRIgG4 ainda não estão bem definidos, e o acompanhamento e avaliação multissistêmica destes pacientes se fazem necessários, incluindo avaliação periódica por imagem.

Portanto, como a DRIGg4 pode simular lesões neoplásicas, condutas mais agressivas podem ser tomadas se este diagnóstico não for considerado. O caso aqui relatado demonstra a importância deste conhecimento pelos radiologistas, o que certamente contribuirá para o diagnóstico correto e a terapêutica apropriada.


REFERÊNCIAS

1. Kamisawa T, Funata N, Hayashi Y, et al. A new clinicopathological entity of IgG4-related autoimmune disease. J Gastroenterol. 2003;38:982-4.

2. Hedgire SS, McDermott S, Borczuk D, et al. The spectrum of IgG4-related disease in the abdomen and pelvis. AJR Am J Roentgenol. 2013;201:14-22.

3. Sun GF, Zuo CJ, Shao CW, et al. Focal autoimmune pancreatitis: radiological characteristics help to distinguish from pancreatic cancer. World J Gastroenterol. 2013;19:3634-41.

4. Stone JH, Zen Y, Deshpande V. IgG4-related disease. N Engl J Med. 2012;366:539-51.

5. Shimosegawa T, Chari ST, Frulloni L, et al. International consensus diagnostic criteria for autoimmune pancreatitis: guidelines of the International Association of Pancreatology. Pancreas. 2011;40:352-8.

6. Kamisawa T, Takuma K, Anjiki H, et al. Differentiation of autoimmune pancreatites from pancreatic cancer by diffusion-weighted MRI. Am J Gastroenterol. 2010;105:1870-5.

7. Chapman R, Fevery J, Kalloo A, et al.; American Association for the Study of Liver Diseases. Diagnosis and management of primary sclerosing cholangitis. Hepatology. 2010;51:660-78.

8. Khalili K, Doyle DJ, Chawla TP, et al. Renal cortical lesions in patients with autoimmune pancreatitis: a clue to differentiation from pancreatic malignancy. Eur J Radiol. 2008;67:329-35.

9. Shiokawa M, Kodama Y, Yoshimura K, et al. Risk of cancer in patients with autoimmune pancreatitis. Am J Gastroenterol. 2013;108:610-7.










1. Médico Radiologista Assistente do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), Campinas, SP, Brasil
2. Médico Residente em Radiologia e Diagnóstico por Imagem da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), Campinas, SP, Brasil
3. Mestre, Médico Radiologista Assistente do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), Campinas, SP, Brasil
4. Médicos Radiologistas Assistentes do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e do Centro Radiológico Campinas - Hospital Vera Cruz, Campinas, SP, Brasil
5. Livre-docente, Professor do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), Campinas, SP, Brasil

Endereço para correspondência:
Dr. Daniel Alvarenga Fernandes
Departamento de Radiologia-FCM-Unicamp
Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária Zeferino Vaz
Campinas, SP, Brasil, 13083-887
E-mail: daniel_alvafer@yahoo.com.br / daniel_alvafer@icloud.com

Recebido para publicação em 8/9/2013.
Aceito, após revisão, em 25/4/2014.

Trabalho realizado no Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), Campinas, SP, Brasil.
 
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