Radiologia Brasileira - Publicação Científica Oficial do Colégio Brasileiro de Radiologia

AMB - Associação Médica Brasileira CNA - Comissão Nacional de Acreditação
Idioma/Language: Português Inglês

Vol. 49 nº 1 - Jan. / Fev.  of 2016

RELATO DE CASO
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Page(s) 53 to 55



Interposição dos cotos do manguito rotador na articulação glenoumeral: uma complicação rara da lesão traumática do manguito rotador

Autho(rs): Paulo Moraes Agnollitto1; Marcio Wen King Chu2; Mario Muller Lorenzato3; Salomão Chade Assan Zatiti4; Marcello Henrique Nogueira-Barbosa5

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Texto em Português English Text

Descritores: Interposição; Manguito rotador; Ruptura; Trauma; Ombro; Ressonância magnética.

Keywords: Interposition; Rotator cuff; Tear; Trauma; Shoulder; Magnetic resonance imaging.

Resumo:
O objetivo deste trabalho é relatar um caso com os achados de imagem característicos da lesão traumática do manguito rotador com interposição de múltiplos cotos de tendões do manguito rotador entre a glenoide e o úmero, confirmada cirurgicamente. Esta condição é uma rara complicação do trauma do ombro. Em geral ocorre no trauma de alta energia, frequentemente associada com luxação da articulação glenoumeral. No caso em questão não houve documentação de luxação franca da articulação glenoumeral. As radiografias mostraram aumento do espaço articular, rotação interna do úmero e fratura do coracoide. Nas imagens de ressonância magnética, além das alterações observadas nas radiografias, foi identificada ruptura massiva do manguito rotador com interposição dos cotos dos tendões do supraespinal, do infraespinal e do subescapular no interior da articulação glenoumeral. Foi realizado tratamento cirúrgico confirmando a lesão e a interposição dos cotos do manguito. É importante que radiologistas e ortopedistas estejam familiarizados com esta entidade, que, pela sua raridade, pode ser negligenciada no atendimento do trauma do ombro.

Abstract:
The present report describes a case where typical findings of traumatic glenohumeral interposition of rotator cuff stumps were surgically confirmed. This condition is a rare complication of shoulder trauma. Generally, it occurs in high-energy trauma, frequently in association with glenohumeral joint dislocation. Radiography demonstrated increased joint space, internal rotation of the humerus and coracoid process fracture. In addition to the mentioned findings, magnetic resonance imaging showed massive rotator cuff tear with interposition of the supraspinatus, infraspinatus and subscapularis stumps within the glenohumeral joint. Surgical treatment was performed confirming the injury and the rotator cuff stumps interposition. It is important that radiologists and orthopedic surgeons become familiar with this entity which, because of its rarity, might be neglected in cases of shoulder trauma.

INTRODUÇÃO

A lesão traumática de tendões do manguito rotador em pacientes jovens é rara e em geral ocorre após trauma de alta energia. Mais raramente ainda, a lesão traumática do manguito pode estar associada à interposição de coto de um ou de mais de um dos tendões do manguito entre o úmero e a glenoide(1-5). No caso da interposição de coto de tendão na articulação glenoumeral (AGU), a apresentação clínica mais comum é a evolução com bloqueio articular, muitas vezes com persistência de subluxação e/ou luxação irredutível da AGU(4-8). O objetivo deste trabalho é relatar um caso com os achados de imagem característicos da lesão traumática do manguito rotador com interposição de múltiplos cotos de tendões do manguito rotador entre a glenoide e o úmero, confirmada cirurgicamente.


RELATO DO CASO

Paciente feminina, 27 anos, encaminhada ao prontosocorro, em outro serviço, com história de acidente motociclístico ocorrido cerca de duas horas antes do atendimento. A paciente apresentava dificuldade de movimentação e dor no ombro direito. Não houve relato ou identificação de luxação franca do ombro no atendimento inicial, sendo identificado um bloqueio articular. A paciente foi avaliada e liberada com medicação analgésica, não tendo sido realizados exames complementares.

A paciente evoluiu com dor e bloqueio do ombro direito e após 15 dias do episódio de trauma procurou atendimento especializado, quando foram realizadas radiografias simples do ombro direito. A avaliação das radiografias mostrou fratura do processo coracoide, aumento do espaço articular glenoumeral e rotação interna do úmero (Figura 1). Não foram identificados sinais de instabilidade glenoumeral nas radiografias realizadas.


Figura 1. Incidência anteroposterior de radiografia do ombro direito mostra aumento do espaço articular glenoumeral (setas contínuas). O úmero se apresentava com rotação interna. A seta tracejada indica a fratura do processo coracoide.



Com base nos achados das radiografias simples, foi aventada a hipótese de laceração traumática do manguito rotador e a paciente foi submetida a ressonância magnética (RM). O exame de RM demonstrou a lesão traumática com interposição dos cotos dos tendões supraespinal, infraespinal e subescapular entre a glenoide e o úmero (Figuras 2 e 3). Também foram identificados fratura do processo coracoide, edema muscular periarticular difuso e edema nos planos gordurosos intermusculares.


Figura 2. Cortes axiais de RM, imagens adquiridas com ponderação intermediária, demonstram interposição do manguito rotador (setas) entre a glenoide e o úmero, explicando o bloqueio e o aumento do espaço articular.


Figura 3. Corte coronal de RM, ponderação intermediária. As setas identificam a interposição dos tendões do manguito rotador entre a glenoide e o úmero. A seta branca aponta o supraespinal e a seta preta mostra o tendão do subescapular.



A paciente foi submetida a exploração cirúrgica aberta, com confirmação diagnóstica e reinserção do manguito rotador (Figura 4). A paciente teve boa evolução no pós-operatório imediato e recebeu alta médica. Após três meses da cirurgia, evoluiu com restrição à rotação externa e foi submetida a uma artroscopia, que revelou aderências que foram liberadas. Após este novo procedimento, a paciente evoluiu bem e sem novas complicações.


Figura 4. A: Achado intraoperatório demonstra a cabeça umeral descoberta (seta contínua) e tendões do manguito rotador retraídos e interpostos na AGU (seta tracejada). B: Achado intraoperatório mostra o manguito rotador (setas contínuas), reparado por fio cirúrgico (seta tracejada), sendo levado até o sítio de inserção na tuberosidade maior do úmero.



DISCUSSÃO

A lesão traumática do manguito rotador com interposição dos cotos na AGU é uma complicação muito rara no trauma do ombro. Em geral ocorre como consequência de trauma de alta energia e frequentemente está associada com luxação da AGU anterior ou posterior. Há relativamente poucos artigos sobre este assunto na literatura, sendo a grande maioria de relatos de caso.

A dificuldade ou incapacidade de reduzir a luxação da AGU não é comum(1-3). As causas de luxação irredutível da AGU podem ser relacionadas à interposição de tecido ósseo ou de tecidos moles(1,2,4,6-10). Dentre as causas relacionadas com a interposição de tecidos moles, podem ocorrer, por exemplo, a interposição do tendão cabeça longa do bíceps(9) e a interposição do nervo musculocutâneo(10); contudo, destaca-se a interposição dos tendões do manguito rotador, especialmente do tendão subescapular(2,4,5,7,8). A interposição de tecidos moles pode ocorrer de forma concomitante à interposição de tecido ósseo(2).

A maioria dos casos relatados na literatura está associada a traumas de alta energia, com episódios de luxação traumática da AGU(1-5), entretanto, assim como em nosso caso, nem sempre a história de luxação fica bem estabelecida(3). Como nossa paciente foi atendida inicialmente em outro serviço, não é possível descartar completamente esta possibilidade.

A apresentação clínica da interposição de coto de tendão do manguito rotador na AGU inclui também dor e graus variados de limitação funcional ou bloqueio articular. O diagnóstico clínico é difícil de ser realizado e deve-se suspeitar desta entidade quando as radiografias prévias e radiografias obtidas após tentativas de redução articular demonstrarem persistência de subluxação ou alargamento do espaço articular(2). Os sinais radiológicos são sutis, mas devem ser valorizados dentro do contexto clínico.

No nosso caso, assim como na revisão da literatura, destacamos o papel da RM na identificação da interposição póstraumática de tecidos moles na AGU(1,2,5). O papel da RM na detecção de interposição pós-traumática de tecidos moles não se restringe ao ombro, e a RM tem sido usada, por exemplo, para detectar a interposição pós-traumática de periósteo em fraturas da cartilagem de crescimento em crianças e adolescentes(11,12). No caso de luxação da AGU irredutível, a tomografia computadorizada pode ser realizada para delimitar melhor fragmentos ósseos bloqueando a redução, porém, este exame tem valor limitado para avaliação de partes moles(2-5).

O manejo da lesão traumática do manguito com aprisionamento dos tendões na AGU deve ser cirúrgico e o diagnóstico precoce minimiza os danos aos ventres musculares e tendões envolvidos, melhorando os resultados pós-operatórios(2,5).

Pela sua raridade, esta condição pode ser facilmente negligenciada no pronto-socorro(1-3), sendo fundamental o conhecimento prévio desta entidade pelos radiologistas e ortopedistas, para que o diagnóstico correto e o tratamento adequado sejam instituídos.

Concluímos que a avaliação por RM foi adequada para identificar o aprisionamento pós-trauma dos tendões do manguito rotador na AGU.


REFERÊNCIAS

1. Lin CL, Su WR, Jou IM, et al. Occult interpositional rotator cuff - an extremely rare case of traumatic rotator cuff tear. Korean J Radiol. 2012;13:98-101.

2. Walch G, Boulahia A, Robinson AH, et al. Posttraumatic subluxation of the glenohumeral joint caused by interposition of the rotator cuff. J Shoulder Elbow Surg. 2001;10:85-91.

3. Rickert M, Loew M. Glenohumeral interposition of a torn rotator cuff in a young motorcyclist. Arch Orthop Trauma Surg. 2006;126:184-7.

4. Connolly S, Ritchie D, Sinopidis C, et al. Irreducible anterior dislocation of the shoulder due to soft tissue interposition of subscapularis tendon. Skeletal Radiol. 2008;37:63-5.

5. Ilaslan H, Bilenler A, Schils J, et al. Pseudoparalysis of shoulder caused by glenohumeral interposition of rotator cuff tendon stumps: a rare complication of posterior shoulder dislocation. Skeletal Radiol. 2013;42:135-9.

6. Davies MB, Rajasekhar C, Bhamra MS. Irreducible anterior shoulder dislocation: the greater tuberosity Hill-Sachs lesion. Injury. 2000;31:470-1.

7. Bridle SH, Ferris BD. Irreducible acute anterior dislocation of the shoulder: interposed subscapularis. J Bone Joint Surg Br. 1990;72:1078–9.

8. Tietjen R. Occult glenohumeral interposition of a torn rotator cuff. A case report. J Bone Joint Surg Am. 1982;64:458-9.

9. Mihata T, Doi M, Abe M. Irreducible acute anterior dislocation of the shoulder caused by interposed fragment of the anterior glenoid rim. J Orthop Sci. 2000;5:404-6.

10. Gudena R, Iyengar KP, Nadkarni JB, et al. Irreducible shoulder dislocation - a word of caution. Orthop Traumatol Surg Res. 2011;97:451-3.

11. Moura MVT. Trapped periosteum in a distal femoral physeal injury: magnetic resonance imaging evaluation. Radiol Bras. 2012;45:184-6.

12. Raman S, Wallace EC. MRI diagnosis of trapped periosteum following incomplete closed reduction of distal tibial Salter-Harris II fracture. Pediatr Radiol. 2011;41:1591-4.










1. Médico Assistente da Divisão de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
2. Médico Adido, Fellow de Radiologia Musculoesquelética da Divisão de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
3. Médico Radiologista da Clínica Radiologia Especializada, Ribeirão Preto, SP, Brasil
4. Médico Ortopedista do Hospital Especializado de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil
5. Professor Associado de Radiologia do Centro de Ciências das Imagens e Física Médica (CCIFM) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

Endereço para correspondência:
Dr. Paulo Moraes Agnollitto
Divisão de Radiologia / CCIFM, FMRP-USP
Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre
Ribeirão Preto, SP, Brasil, 14048-900
E-mail: E-mail: agno53@gmail.com

Recebido para publicação em 31/10/2013
Aceito, após revisão, em 10/4/2014

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil.
 
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