RELATO DE CASO
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Autho(rs): Mauricio Gustavo Ieiri Yamanari1; Maria Clara Dias Mansur2; Fernando Uliana Kay3; Paulo Rogerio Barboza Silverio3; Shri Krishna Jayanthi4; Marcelo Buarque de Gusmão Funari5 |
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Descritores: Embolismo de projétil; Trauma; Tomografia computadorizada; Arteriografia pulmonar. |
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Resumo: INTRODUÇÃO
A violência é um importante problema de saúde pública no Brasil, sendo a terceira causa mais comum de mortalidade. Além de fatores socioculturais, a violência também está relacionada ao abuso de álcool e drogas ilícitas, juntamente com uma ampla disponibilidade de armas de fogo(1). Os efeitos de um projétil no corpo dependem de uma série de fatores: velocidade, perfil de entrada, diâmetro da bala, distância percorrida no interior do corpo e características biológicas do órgão afetado(2). Uma complicação imprevisível e rara de ferimentos por bala é a embolia do projétil. Com apenas poucos casos descritos na literatura, ela pode se tornar um desafio diagnóstico para o emergencista. Embolias no sistema venoso são ainda mais raras e suas complicações incluem: distúrbio nas valvas cardíacas, endocardite, septicemia, trombose venosa, tromboflebite, arritmias e hipoxemia secundária a embolia pulmonar arterial(3). RELATO DO CASO Relatamos o caso de um paciente do sexo masculino de 30 anos de idade, vítima de múltiplos ferimentos por arma de fogo. Foi admitido no serviço de emergência hemodinamicamente estável, sem alterações respiratórias, e queixando-se de dor na região pélvica. O exame físico revelou, dentre os vários ferimentos por arma de fogo, um orifício de entrada na região glútea esquerda, sem orifício de saída. Radiografias simples da pelve, membros inferiores e membro superior direito não mostraram fraturas ou projéteis de arma de fogo. Já a radiografia do tórax demonstrou um artefato metálico compatível com um projétil localizado no hilo pulmonar esquerdo. Não havia sinais de pneumotórax, hemotórax ou fraturas da caixa torácica (Figura 1). Figura 1. Radiografia simples do tórax mostra projétil de arma de fogo no hilo pulmonar esquerdo. Não se caracteriza pneumotórax, hemotórax ou fraturas. A tomografia computadorizada (TC) do tórax revelou que o artefato metálico estava situado na transição da artéria pulmonar esquerda com a artéria lingular. Demais estruturas torácicas tinham aparência tomográfica normal. Também foi realizada TC do abdome e pelve, que revelou fragmentos metálicos (Figura 2) na faixa do tiro, nos planos musculares da região glútea esquerda para a região inguinal ipsilateral. Havia densificação dos planos gordurosos ao redor dos vasos ilíacos esquerdos (Figura 3) e da veia cava inferior, bem como pequena quantidade de líquido intraperitoneal. Figura 2. Tomografia da pelve (janela óssea) identifica fragmentos metálicos junto à musculatura pélvica esquerda. Figura 3. Tomografia da pelve (janela de partes moles) demonstra densificação junto aos vasos ilíacos à esquerda e pequena quantidade de líquido livre (seta). De acordo com os achados descritos, foi diagnosticada embolia pulmonar do projétil, com origem na veia ilíaca externa esquerda. O paciente foi submetido a laparotomia exploradora, na qual foram encontrados 500 ml de sangue na cavidade peritoneal, com hematoma epiploico e mesossigmoide. Não havia sinais de perfuração de vísceras ocas ou isquemia. Arteriografia pulmonar realizada dois dias após procedimento cirúrgico confirmou projétil na origem da artéria lingular, reduzindo a perfusão aos segmentos pulmonares correspondentes (Figura 4). Foram realizadas duas tentativas de extração da bala, sem sucesso. Figura 4. Arteriografia pulmonar com cateterização seletiva da artéria pulmonar esquerda mostra redução do fluxo para o segmento lingular do lobo pulmonar superior esquerdo. DISCUSSÃO Um projétil de arma de fogo pode atingir o corpo de duas maneiras: alta velocidade (armamento militar) ou baixa velocidade (armamento civil). Em geral, o projétil em alta velocidade entra no corpo, tem caminho retilíneo e sai do corpo, enquanto o projétil em baixa velocidade pode ser desviado por ossos ou tecidos moles e permanecer incluso, podendo ainda penetrar vasos ou parede cardíaca. A maioria dos casos de embolia de projéteis ocorre no sistema arterial (80%, contra 20% no sistema venoso)(4). Embolias arteriais são sintomáticas em 80% (claudicação/isquemia/tromboflebite periférica)(5). Por outro lado, a maioria das embolias venosas é assintomática. Quando presentes, os sintomas podem incluir dispneia, hemoptise e dor torácica(6). Uma minoria das embolias venosas é retrógrada (movimento do projétil contra a direção normal do fluxo de sangue)(6), ou paradoxal, definida como a passagem do projétil a partir do sistema venoso ao sistema arterial através de fístula arteriovenosa, perfuração do septo atrioventricular ou defeito ventricular pelo forame oval patente. A embolia de projétil deve ser ativamente pesquisada quando uma bala entra no corpo e não se caracteriza orifício de saída. Sugerimos realização de radiografias do corpo inteiro ou TC de corpo inteiro, conforme a disponibilidade do serviço. A angiografia fica reservada como complementação diagnóstica ou como opção terapêutica de extração endovascular. A exata localização da bala é muito importante para o planejamento terapêutico. Embora haja controvérsias, a maioria dos autores admite conduta conservadora expectante nos pacientes assintomáticos com embolia do projétil para o sistema venoso, e extração cirúrgica ou endovascular caso haja sintomas ou risco de trombose ou deslocamento do projétil(3,7). Embolia de projétil para o sistema arterial também tem indicação cirúrgica(8). No caso aqui relatado, o paciente manteve-se assintomático durante a internação toda, antes e após a tentativa de extração do projétil pela arteriografia pulmonar. Optou-se então por tratamento conservador, com seguimento ambulatorial. REFERÊNCIAS 1. Reichenheim ME, de Souza ER, Moraes CL, et al. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet. 2011;377:1962-75. 2. Lichte P, Oberbeck R, Binnebösel M, et al. A civilian perspective on ballistic trauma and gunshot injuries. Scand J Trauma Resusc Emerg Med. 2010;18:35. 3. Miller KR, Benns MV, Sciarretta JD, et al. The evolving management of venous bullet emboli: a case series and literature review. Injury. 2011;42:441-6. 4. Colquhoun IW, Jamieson MP, Pollock JC. Venous bullet embolism: a complication of airgun pellet injuries. Scott Med J. 1991;36:16-7. 5. Schurr M, McCord S, Croce M. Paradoxical bullet embolism: case report and literature review. J Trauma. 1996;40:1034-6. 6. Schmelzer V, Mendez-Picon G, Gervin AS. Case report: transthoracic retrograde venous bullet embolization. J Trauma. 1989;29:525-7. 7. Hassan AM, Cooley RS, Papadimos TJ, et al. Pulmonar bullet embolism - a safe treatment strategy of a potentially fatal injury: a case report. Patient Saf Surg. 2009;3:12. 8. Adegboyega PA, Sustento-Reodica N, Adesokan A. Arterial bullet embolism resulting in delayed vascular insufficiency: a rationale for mandatory extraction. J Trauma. 1996;41:539-41. 1. Médico Assistente do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICr/HC-FMUSP), Radiologista do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil 2. Fellow de Neurorradiologia do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil 3. Médicos Assistentes do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), Radiologistas do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil 4. Chefe do Serviço de Emergência do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil 5. Chefe do Grupo de Tórax do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP) e do Departamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil Endereço para correspondência: Dr. Mauricio Gustavo Ieiri Yamanari Rua Oscar Freire, 1735, ap. 131, Cerqueira César São Paulo, SP, Brasil, 05409-011 E-mail: mauriciogustavo91@yahoo.com.br Recebido para publicação em 23/5/2013. Aceito, após revisão, em 30/7/2013. Trabalho realizado no Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil. |