ENSAIO ICONOGRÁFICO
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Autho(rs): Juliana Oggioni Gaiotti1; Natália Delage Gomes1; Ana Maria Doffémond Costa1; Caroline Laurita Batista Couto Villela1; Wanderval Moreira2; Renata Lopes Furletti Caldeira Diniz2 |
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Descritores: Otosclerose; Ostospongiose; Hipoacusia neurossensorial; Tomografia computadorizada multidetectores. |
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Resumo: INTRODUÇÃO
A otosclerose é uma importante causa de perda auditiva neurossensorial, com incidência de aproximadamente 7% a 10% da população geral. Lesões otoscleróticas podem se originar na maioria das regiões do labirinto ósseo, apresentando características radiológicas e clínicas de acordo com o sítio acometido. Neste contexto, a tomografia computadorizada multidetectores (TCMD) tem sido cada vez mais utilizada, pois possibilita a caracterização, a localização e a confirmação diagnóstica das lesões, como também auxilia no seu planejamento cirúrgico e no diagnóstico diferencial. Assim, o radiologista deve estar familiarizado com as peculiaridades desta doença, como também, com o detalhamento anatômico do osso temporal neste método. Foram realizados revisão da literatura e ensaio iconográfico ressaltando os principais sítios acometidos por esta doença, assim como suas principais características. Trata-se de estudo retrospectivo de casos diagnosticados em nosso serviço, realizados em equipamento de TCMD de 64 canais Toshiba, com aquisição volumétrica em axial, cortes inframilimétricos (0,2 mm) e técnica de alta resolução, para avaliação de estruturas ósseas e reconstruções multiplanares em axial, coronal e oblíquas, sem utilização de contraste iodado, possibilitando melhor avaliação da platina do estribo e da janela oval(1). DISCUSSÃO A otosclerose (otospongiose) é uma doença inflamatória crônica, limitada ao osso temporal, que promove o desarranjo metabólico da camada endocondral da cápsula ótica(2,3). É caracterizada por uma osteólise inicial (espongiose) seguida de reconstrução com osso displásico, denso (esclerose). Assim, os termos otospongiose e otosclerose são duas denominações diferentes de dois estágios de uma mesma doença, sendo a otosclerose o último estágio(4). Apresenta incidência de 7% a 10% na população geral, inicia-se comumente na 3ª ou 4ª décadas de vida, sendo rara antes dos 10 anos de idade(5). Predomina na raça caucasiana e no sexo feminino, na proporção de 2:1, podendo se agravar durante a gravidez. Clinicamente, a otospongiose se caracteriza por disacusia condutiva, neurossensorial ou mista progressivas e pela presença de zumbidos(5). A perda auditiva condutiva é geralmente secundária ao acometimento da platina do estribo(5,6), enquanto a disacusia neurossensorial ou mista não possuem mecanismos fisiopatogênicos bem elucidados, acreditando ser proveniente de lesão direta da cóclea e do ligamento espiral(6). O quadro clínico e o exame otoscópico são muito característicos na maioria dos casos. Os exames imaginológicos apresentam importante papel nos casos não característicos, no detalhamento anatômico, no diagnóstico diferencial, no planejamento cirúrgico e na avaliação de complicações pós-operatórias(5,6). Dentre os exames de imagem, a TCMD tem sido amplamente utilizada, pois possibilita a avaliação das janelas, da espessura da platina, da densidade óssea da cápsula, do acometimento do endósteo, da anatomia pré-operatória, assim como a confirmação diagnóstica, a localização e extensão das lesões. A identificação dos focos otoscleróticos na TCMD, no entanto, é mais trabalhosa que as lesões espongióticas(1,2,6,7), por causa da semelhança entre as densidades das lesões escleróticas e da cápsula ótica normal. Essas áreas de esclerose somente são visualizadas nos casos em que a doença provoca o espessamento da platina do estribo, a obliteração das janelas vestibular e coclear, a distorção do contorno labiríntico e a ossificação intralabiríntica(7). É importante salientar, no entanto, que em até 10% dos casos o foco de otosclerose pode não ser identificado na tomografia (otospongiose infrarradiológica)(8). A ressonância magnética, por sua vez, pode auxiliar na detecção de focos otoscleróticos, porém, devido aos poucos casos descritos na literatura, dificuldades diagnósticas podem surgir quando tal exame é o primeiro realizado na investigação de pacientes com perda auditiva neurossensorial. Seu papel principal tem sido para a pesquisa do foco ativo, extensão intracanalicular do foco e principalmente a detecção de complicações pós-operatórias(9). Diversos sistemas de classificações imaginológicas têm sido propostos por vários autores, para a graduação e detalhamento da otosclerose à tomografia computadorizada, porém não há, até o presente momento, uma classificação universalmente aceita(6). Atualmente, a classificação de Veillon(10) (Tabela 1) ainda tem sido amplamente utilizada, no entanto, esta classificação não apresenta correlação clínica. Recentemente, tem-se sugerido a utilização da classificação de Symons e Fanning, que é uma classificação anatômica da doença(6). Acredita-se que essa gradação ainda possua correlação clínica, porém se fazem necessários maiores estudos correlacionando-a com estudos audiométricos para confirmação dessa premissa(6). Lesões otoscleróticas podem se originar na maioria das regiões do labirinto ósseo, apresentando características radiológicas e clínicas peculiares de acordo com o sítio acometido, podendo, desta forma, ser dividida em otosclerose fenestral e retrofenestral. Em 80% a 90% dos casos esse processo patológico é do tipo fenestral e se desenvolve na chamada "área de predileção", próxima à fissura antifenestram, onde se observa uma hipodensidade anterior à janela oval (Figura 1), no ângulo formado entre a platina do estribo, o processo cocleariforme e o promontório(5,11). Por esse motivo, essa região deve ser considerada a mais importante no diagnóstico radiológico da otosclerose, devendo sempre rastreá-la com cuidado nos exames imaginológicos. Figura 1. Corte tomográfico em axial. Hipodensidade anterior à janela oval (seta). Casos em que ocorre obliteração desta janela (otosclerose obliterativa) são particularmente desafiadores para os cirurgiões. A otosclerose obliterativa (Figura 2) apresenta incidência de 1% a 33% e pode ser definida como um espessamento da platina do estribo, usualmente superior a 0,6 mm, em que a janela oval é preenchida pela lesão otosclerótica em proporções variadas e o ligamento anular fica totalmente comprometido, impossibilitando, assim, a delineação das margens da fenestra vestibular(5,12). Figura 2. Tomografia computadorizada, reconstrução em coronal. Obliteração da janela oval (otosclerose obliterante). A evidência do foco na platina do estribo (Figura 3) na TCMD é uma informação muito útil, principalmente nos pacientes selecionados para estapedotomia e/ou estapedectomia, visto que pode representar causa significativa de insucesso nas cirurgias de estribo(7,12). Figura 3. Corte tomográfico em axial. Espessamento da platina do estribo (seta). Outro sítio comumente afetado (frequentemente simultâneo ao acometimento da janela oval, nos casos mais severos da doença(11) é a borda da janela redonda (Figura 4), com incidência variando de 20% a 50%(5,7). O acometimento da janela redonda usualmente apresenta pior prognóstico após a cirurgia(5,8,12), pois a presença dele pode alterar a compensação da onda sonora. Figura 4. Tomografia computadorizada, reconstrução em coronal. Foco na janela redonda (seta). Outros focos otoscleróticos fenestrais menos comuns são o promontório da cóclea, na região compreendida entre as duas janelas labirínticas, e o foco acometendo o canal do nervo facial no segmento timpânico(7). Os focos retrofenestrais constituem aproximadamente 15% dos casos de otosclerose. Dentre estes, o que merece destaque é o envolvimento coclear. O acometimento neste, usualmente, é simétrico e bilateral(5). A visualização do foco na cóclea e sua localização em partes específicas desta se faz importante e correlacionam-se clinicamente com perda de determinadas frequências. No acometimento coclear (Figura 5) é possível identificar, à TCMD, a característica aparência da dupla hipodensidade da cóclea (sinal do duplo anel), produzida pela desmineralização da camada endocondral envolta da membrana coclear hipodensa e que pode ser limitada a um segmento da cóclea ou mesmo envolver todo o seu contorno(5,6,13). Esses focos pericocleares podem ainda ser divididos em dois tipos: sem envolvimento endosteal e com envolvimento endosteal (Figura 6), sendo este último considerado uma forma mais severa da otosclerose(2). O acometimento endosteal ocorre, em geral, quando o foco está em íntimo contato com a camada endosteal da cóclea, podendo haver liberação de enzimas para o líquido labiríntico e consequentes inflamação e degeneração das estruturas intracocleares. Figura 5. Corte tomográfico em axial. Foco pericoclear (setas), bilateralmente. Figura 6. Corte tomográfico em axial. Foco pericoclear com acometimento endosteal (seta). Focos adjacentes aos canais semicirculares, anterior ao meato acústico interno (Figura 7), intralabiríntico (Figura 8), ossicular (Figura 9) e no labirinto posterior (Figura 10) também podem ser encontrados em pacientes com otosclerose retrofenestral(1). Figura 7. Corte tomográfico em axial. Foco anterior ao conduto auditivo interno (seta). Figura 8. Corte tomográfico em axial. Foco intralabiríntico (seta). Figura 9. Corte tomográfico em axial. Foco ossicular (seta). Figura 10. Corte tomográfico em axial. Foco no labirinto posterior (seta). O radiologista deve iniciar o estudo pesquisando a região anterior à janela oval, que é o sítio mais acometido (fissura antifenestram), com especial atenção para a platina do estribo e a possibilidade de uma otosclerose obliterativa. A seguir deve-se avaliar a janela redonda, segundo sítio em ordem de frequência. Logo após, sugere-se a pesquisa de focos retrofenestrais, salientando-se a importância da avaliação do acometimento endosteal, e para finalizar, o estudo de focos menos comuns, já citados anteriormente. Os cortes axiais são fundamentais na abordagem radiológica do paciente com otosclerose fenestral, sendo mais fidedignos, sobretudo, naqueles com foco anterior à janela oval, em que o plano axial oblíquo assume um papel importante. A incidência coronal é útil para a detecção dos espessamentos e obliterações nas janelas redondas, nos focos no promontório e relacionados ao segmento timpânico do nervo facial. Em relação à otosclerose retrofenestral, não há diferenças estatísticas entre as incidências axial e coronal(2,7). Para avaliação pré-operatória(12), os seguintes itens são relevantes e devem ser observados: estreitamento da janela oval (congênito ou decorrente de deiscência do facial), otosclerose obliterativa da janela oval, obliteração da janela redonda (Figura 11), acometimento endosteal, malformações labirínticas, fixação da cadeia ossicular, deiscência do canal semicircular superior, aqueduto vestibular dilatado (Figura 12) e distância entre o processo lenticular da bigorna e a platina do estribo (Figura 13), para que o cirurgião possa estimar o tamanho da prótese a ser utilizada. Figura 11. Corte tomográfico em axial. Obliteração da janela redonda (seta). Figura 12. Corte tomográfico em axial. Aquedutos vestibulares dilatados (setas). Figura 13. Tomografia computadorizada, reconstrução em coronal. Distância da bigorna à platina do estribo. É importante ressaltar, ainda, que esses achados tomográficos não são exclusivos da otosclerose e que outras doenças podem gerar alterações semelhantes, tais como a otossífilis, a osteogênese imperfeita (Figura 14) e a doença de Paget(6). Figura 14. Tomografia computadorizada, reconstrução no plano axial oblíquo. Osteogênese imperfeita. CONCLUSÃO A TCMD, com seus diferentes planos, tem sido cada vez mais utilizada, visto que permite a confirmação e a caracterização adequada da otosclerose, assim como a identificação de outras causas relacionadas a surdez, simulando ou associadas a esta, e a avaliação anatômica pré-operatória. Ainda que a ressonância magnética possa ser útil neste contexto, seu principal papel, atualmente, tem sido a pesquisa do foco ativo, extensão intracanalicular do foco e principalmente a detecção de complicações pós-operatórias. Desta forma, o conhecimento da anatomia do osso temporal e das peculiaridades da otosclerose à TCMD é uma habilidade que se espera do radiologista geral, uma vez que auxilia no diagnóstico preciso desta e na instituição de propedêutica adequada. REFERÊNCIAS 1. Mori N, Toyama Y, Kimura N, et al. Detection of small fenestral otosclerotic lesions by high-resolution computed tomography using multiplanar reconstruction. Auris Nasus Larynx. 2013;40:36-40. 2. Vicente AO, Penido NO, Yamashita HK, et al. Tomografia computadorizada no diagnóstico da otosclerose retrofenestral. Rev Bras Otorrinolaringol. 2004;70:74-82. 3. Miranda GG, Orellana PP, Matus CL, et al. Otosclerosis: análisis imagenológico con tomografia computada multicorte. Rev Hosp Clin Univ Chile. 2006;17:356-9. 4. Menif E, Bejjar S, Miladi S, et al. Diagnostic de l'otodpongiose et classification tomodensitométrique pronostique. Société Française de Radiologie. Posters électroniques. [acessado em 10 de abril de 2012]. Disponível em: http://pe.sfrnet.org/ModuleConsultationPoster/consultation Poster.aspx?intIdPoster=4238. 5. Poirrier V, Escude B, Granier I, et al. Imagerie de l'otospongiose. Société Française de Radiologie. Posters électroniques. [acessado em 10 de abril de 2012]. Disponível em: http://pe.sfrnet.org/ModuleConsultationPoster/posterDetail.aspx?intIdPoster=1195. 6. Lee TC, Aviv RI, Chen JM, et al. CT grading of otosclerosis. AJNR Am J Neuroradiol. 2009:30:1435-9. 7. Vicente AO, Penido NO, Yamashita HK, et al. Tomografia computadorizada no diagnóstico da otosclerose fenestral. Rev Bras Otorrinolaringol. 2004;70:66-73. 8. Lagleyre S, Sorrentino T, Calmels MN, et al. Reliability of high-resolution CT scan in diagnosis of otosclerosis. Otol Neurotol. 2009;30:1152-9. 9. Rangheard AS, Marsot-Dupuch K, Mark AS, et al. Postoperative complications in otospongiosis: usefulness of MR imaging. AJNR Am J Neuroradiol. 2001;22:1171-8. 10. Craighero F, Van Driessche V, Van Dinther J, et al. Valeur de l'hypondensité préméatique interne (HDMI) dans l'otospongiose. In: Journées Françaises de Radiologie. 21-25 octobre; Paris, France. [acessado em 10 de abril de 2012]. Disponível em: http://pe.sfrnet.org/ModuleConsultationPoster/consultationPoster.aspx?intIdPoster=4897. 11. Wycherly BJ, Berkowitz F, Noone AM, et al. Computed tomography and otosclerosis: a practical method to correlate the sites affected to hearing loss. Ann Otol Rhinol Laryngol. 2010;119:789-94. 12. Ukkola-Pons E, Williams M, Ayache D, et al. Otospongiose préopératoire en quatrième vitesse: "ce que le chirurgien veut vraiment savoir". Société Française de Radiologie. Posters électroniques. [acessado em 10 de abril de 2012]. Disponível em: http://pe.sfrnet.org/ModuleConsultation-Poster/consultationPoster.aspx?intIdPoster=4233. 13. Ou Y, Zhang Z, Chen S. et al. Cochlear otosclerosis: 3 cases report and literature review. Lin Chung Er Bi Yan Hou Tou Jing Wai Ke Za Zhi. 2009;23:14-6, 20. 1. Médicas Especializandas em Radiologia e Diagnóstico por Imagem do Hospital Mater Dei - Mater Imagem, Belo Horizonte, MG, Brasil 2. Médicos Radiologistas, Preceptores do Serviço de Radiologia e Diagnóstico por Imagem do Hospital Mater Dei - Mater Imagem, Belo Horizonte, MG, Brasil Endereço para correspondência: Dra. Juliana Oggioni Gaiotti Rua Rio Grande do Sul, 1158, ap. 1001, Santo Agostinho Belo Horizonte, MG, Brasil, 30170-111 E-mail: jugaiotti @gmail.com Recebido para publicação em 5/7/2012. Aceito, após revisão, em 18/3/2013. Trabalho realizado no Hospital Mater Dei, Belo Horizonte, MG, Brasil. |