ARTIGO ORIGINAL
|
|
|
|
Autho(rs): Fabiana Paiva Martins1; Eduardo Garcia Vilela2; Maria de Lourdes Abreu Ferrari2; Henrique Osvaldo da Gama Torres2; Juliana Brovini Leite3; Aloísio Sales da Cunha4 |
|
Descritores: Ultrassom Doppler; Fluxo da artéria mesentérica superior; Doença de Crohn; Atividade inflamatória. |
|
Resumo: INTRODUÇÃO
A doença de Crohn (DC) é uma afecção inflamatória crônica recorrente que afeta o trato gastrintestinal. Seu tratamento, embora efetivo no alívio dos sintomas e na melhora da qualidade de vida, não é curativo. A avaliação da atividade inflamatória é de grande importância porque o atraso na instituição do tratamento pode levar a complicações. O marcador ideal de atividade inflamatória na DC ainda não existe. Os índices clínicos disponíveis se utilizam de sintomas subjetivos como dor abdominal e sensação de bem-estar e apresentam baixa correlação com sinais endoscópicos e histopatológicos de atividade. Exames bioquímicos podem ser mais objetivos, mas não são mais específicos que os índices clínicos. Os métodos endoscópicos são invasivos, demorados e de alto custo, inviabilizando sua utilização rotineira para todos os pacientes, especialmente quando são necessários exames se-riados(1,2). A enterografia por tomografia computadorizada tem-se mostrado eficiente na avaliação da atividade inflamatória, mas utiliza radiação ionizante, o que limita sua indicação no contexto de recorrências frequentes(3,4). A enterografia por ressonância magnética apresenta resultados comparáveis aos da enterografia por tomografia computadorizada(1), mas ainda é pouco disponível em nosso meio. Alterações microvasculares caracterizadas por injúria vascular e infarto encontram-se presentes em peças ressecadas de intestino delgado de pacientes com DC e variam com a intensidade da reação inflamatória, resultando em neovascularização(5,6), que pôde ser observada também em estudos angiográficos(7,8), refletindo provavelmente um aumento do fluxo sanguíneo para os segmentos intestinais acometidos. Com a divulgação de estudos que demonstraram a viabilidade do Doppler para avaliação do fluxo da artéria mesentérica superior (AMS)(9-11), houve um interesse crescente na avaliação da hemodinâmica esplâncnica na DC por meio do Doppler, por tratar-se de método não invasivo, seguro, quantitativo, de boa reprodutibilidade e baixo custo. MATERIAIS E MÉTODOS Pacientes Foram avaliados, prospectivamente, 42 pacientes com diagnóstico prévio de DC com acometimento do intestino delgado, definido segundo critérios clínicos, endoscópicos, radiológicos, cirúrgicos e histopatológicos(12), provenientes do Ambulatório de Intestino do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), recrutados entre outubro de 2006 e novembro de 2009. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG (ETIC 87/08). Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido antes de sua inclusão no estudo. Os pacientes foram divididos em dois grupos, utilizando-se o escore do índice de atividade da doença de Crohn (Crohn's disease activity index - CDAI) (Tabela 1) como padrão de referência(13): grupo 1 - composto por pacientes com CDAI inferior a 150, caracterizando doença em remissão; grupo 2 - composto por pacientes com CDAI maior que 150, caracterizando doença em atividade. Foram excluídos do estudo pacientes gestantes ou com doenças coexistentes graves de origem cardiopulmonar ou renal. Os pacientes foram avaliados clinicamente segundo a rotina de atendimento do ambulatório e submetidos ao Doppler antes da alteração de qualquer conduta médica. Os exames foram realizados de forma cega, sem que o examinador soubesse da história clínica/classificação do paciente. Após a realização dos exames, os prontuários dos pacientes foram revisados para coleta de dados clínicos e laboratoriais. Os pacientes foram classificados segundo a idade ao diagnóstico, localização da doença e forma de apresentação, de acordo com a classificação de Viena(14) (Tabela 2). Doppler da AMS Os exames foram realizados por um radiologista experiente em ultrassonografia e Doppler, utilizando um equipamento com duplex Doppler modelo ATL 5000 Sono-CT (Philips Medical Systems; Best, Holanda), com transdutor convexo multifrequencial de 2-5 MHz. Os pacientes foram examinados pela manhã, após jejum de oito horas. A AMS era examinada no plano sagital, utilizando zoom de alta definição e frequência de repetição de pulsos de 5 kHz. O volume de amostra Doppler era posicionado 2-3 cm distalmente à origem do vaso e antes da emergência de seus ramos e ajustado para englobar o lúmen vascular, porém sem to-car suas paredes. Um espectro de pelo menos cinco ciclos cardíacos era obtido durante apneia e o equipamento realizava a determinação automática da velocidade média de fluxo. O ângulo de insonação era determinado na imagem modo B em tempo real e mantido sempre inferior a 60º. A medida do diâmetro da AMS era utilizada pelo equipamento para determinação da área do vaso e cálculo automático do volume de fluxo da AMS (Figura 1). Com o objetivo de reduzir o erro randômico, cada medida era repetida três vezes e a média foi considerada como resultado final(15). Figura 1. Espectro de fluxo da artéria mesentérica superior pelo Doppler em paciente com doença de Crohn em atividade. Após a realização do Doppler, os pacientes eram submetidos a uma US abdominal total, com especial atenção para avaliação de espessamento de parede de alças de delgado (> 4 mm) e presença de fístulas e abscessos(16,17). Análise estatística A comparação entre os dois grupos foi realizada utilizando-se os testes de quiquadrado e exato de Fisher para as variáveis dicotômicas e o teste t de Student para as variáveis contínuas. O nível de significância considerado foi 5% (p < 0,05). A avaliação do desempenho do teste para caracterização da atividade inflamatória na DC foi realizada mediante obtenção da curva receiver operating characteristic (ROC) e seleção do ponto de corte, com determinação da sensibilidade, especificidade e valores preditivos positivo e negativo, em relação ao padrão de referência. RESULTADOS Dois pacientes foram retirados da análise por não apresentarem condições técnicas satisfatórias para a realização do Doppler da AMS, em razão de distensão abdominal excessiva. Assim, o grupo 1 foi composto por 28 pacientes (70%) com DC em remissão e o grupo 2, por 12 pacientes (30%) com doença em atividade avaliada pelo escore do CDAI. A ultrassonografia abdominal mostrava alterações, caracterizadas por espessamento das paredes do íleo, presença de fístula enteroentérica e coleção cavitária em 16 pacientes (40%), sendo as alterações mais frequentemente observadas no grupo 2 (p = 0,037). A média do volume de fluxo na AMS foi significativamente maior no grupo 2 (626 ml/min ± 236) quando comparada à do grupo 1 (376 ml/min ± 190), com p = 0,001 (Figura 2). Figura 2. Boxplot da comparação do volume de fluxo da AMS nos pacientes com DC em remissão (grupo 1) e em atividade (grupo 2). A área sob a curva ROC para o volume de fluxo da AMS foi 0,833 (p = 0,001). Adotou-se como ponto de corte o valor de 500 ml/min, considerado pela literatura como o limite superior da normalidade para indivíduos saudáveis(18-20) e utilizado também para avaliação do desempenho do teste. No grupo de pacientes estudado, a medida do volume de fluxo da AMS pelo Doppler apresentou sensibilidade de 83% e especificidade de 82% para o diagnóstico de atividade inflamatória. Houve ainda associação estatisticamente significativa entre o resultado alterado da medida do volume de fluxo da AMS e a presença de atividade inflamatória na DC (p = 0,0001). DISCUSSÃO A existência de alterações hemodinâmicas na DC já foi previamente demonstrada em estudos angiográficos(7,8) e com radionuclídeos(21), caracterizadas por estado hiperdinâmico, provavelmente decorrente de congestão, estase vascular e neovascularização. Do ponto de vista fisiopatológico, seria razoável supor que tais alterações se refletiriam em aumento do volume de fluxo da AMS ao Doppler, hipótese esta já admitida em outros estudos. Embora alguns autores afirmem que os resultados da literatura são conflitantes no que se refere à associação entre as alterações observadas no estudo Doppler da AMS e a presença de atividade inflamatória na DC(22,23), acreditamos que tais discrepâncias se devam, em grande parte, a diferenças cruciais no método utilizado, notadamente nos parâmetros empregados para o resultado do Doppler da AMS. Sem dúvida, entre os parâmetros já avaliados, o volume de fluxo da AMS se destacou como o de melhor correlação com a atividade inflamatória(24,25). Assim como já observado por outros autores(24-26), o presente estudo mostrou que os pacientes com DC em atividade apresentam volume de fluxo na AMS significativamente maior que os com doença em remissão. Além disso, considerando-se o valor de 500 ml/min como ponto de corte, encontramos sensibilidade de 83% e especificidade de 82% para o diagnóstico de atividade inflamatória, valores também semelhantes aos relatados em outros estudos. Alguns autores(25,27) questionam a utilidade da medida do volume de fluxo da AMS para caracterização da atividade inflamatória na CD, mesmo após encontrar associação significativa entre o aumento do fluxo e sinais clinicolaboratoriais de atividade, devido à existência de uma faixa de sobreposição de valores das medias de volume de fluxo entre os pacientes com CD em atividade e remissão, próximo ao ponto de corte de 500 ml/min. Tal faixa foi observada por van Oostayen et al.(28,29) e definida como uma "zona cinza" de valores entre 450 e 600 ml/min na qual o teste seria menos útil. Em nosso estudo observamos sete pacientes com volume de fluxo dentro dessa "zona cinza" de valores. Pode-se supor que pacientes com inflamação menos intensa ou que tenham normalmente um volume de fluxo mais alto se mantenham nessa zona; cumpre lembrar que o CDAI, embora amplamente utilizado, apresenta muitas limitações na avaliação da atividade inflamatória(13). Dentre dois pacientes com resultados falso-negativos, um apresentou escore do CDAI de 180 e volume de fluxo de 469 ml/min (dentro da "zona cinza") e ha-via sido submetido previamente a enterectomia ileocólica parcial, o que pode explicar a ausência de aumento de fluxo na AMS. O outro paciente apresentava CDAI de 206 e volume de fluxo de 259 ml/min; apesar de não encontrarmos explicação para tal discrepância, o paciente apresentava proteína C reativa normal, o que nos permitiu a suposição de que talvez o aumento do CDAI poderia ser decorrente de sintomas subjetivos e não relacionados a atividade inflamatória, influência esta reconhecida pela literatura(13). A principal limitação do estudo foi o tamanho da amostra, o que resultou em intervalos de confiança amplos para as medidas de desempenho do teste. Além disso, novos estudos com avaliação prospectiva dos pacientes antes e após o tratamento podem ser úteis para esclarecer algumas das suposições levantadas na discussão. CONCLUSÃO As médias do volume de fluxo da AMS foram maiores nos pacientes com CD em atividade, observando-se associação estatisticamente significativa entre os resultados alterados do teste e a atividade inflamatória avaliada pelo escore do CDAI. Por tratar-se de método não invasivo, seguro e de baixo custo, o estudo Doppler da AMS pode ser útil na avaliação da atividade inflamatória de pacientes com DC. Agradecimento Ao Instituto Hermes Pardini, por ter disponibilizado a realização dos exames de ultrassonografia e Doppler da AMS, sem ônus para os pacientes ou pesquisadores. REFERÊNCIAS 1. Vilela EG, Torres HOG, Martins FP, et al. Evaluation of inflammatory activity in Crohn's disease and ulcerative colitis. World J Gastroenterol. 2012;18:872-81. 2. Nikolaus S, Schreiber S. Diagnostics of inflammatory bowel disease. Gastroenterology. 2007;133:1670-89. 3. Booya F, Fletcher JG, Huprich JE, et al. Active Crohn disease: CT findings and interobserver agreement for enteric phase CT enterography. Radiology. 2006;241:787-95. 4. Jaffe TA, Gaca AM, Delaney S, et al. Radiation doses from small-bowel follow-through and abdominopelvic MDTC in Crohn's disease. AJR Am J Roentgenol. 2007;189:1015-22. 5. Brahme F, Lindstöm C. A comparative radiographic and pathological study of intestinal vasoarchitecture in Crohn's disease and in ulcerative colitis. Gut. 1970;11:928-40. 6. Wakefield AJ, Sawyerr AM, Dhillon AP, et al. Pathogenesis of Crohn's disease: multifocal gastrointestinal infarction. Lancet. 1989;2:1057-62. 7. Boijsen E, Reuter SR. Mesenteric angiography in the evaluation of inflammatory and neoplastic disease of the intestine. Radiology. 1966;87:1028-36. 8. Lunderquist A, Knutsson H. Angiography in Crohn's disease of the small bowel and colon. Am J Roentgenol Radium Ther Nucl Med. 1967;101:338-44. 9. Jäger K, Bollinger A, Valli C, et al. Measurement of mesenteric blood flow by duplex scanning. J Vasc Surg. 1986;3:462-9. 10. Moneta GL, Taylor DC, Helton WS, et al. Duplex ultrasound measurement of postprandial intestinal blood flow: effect of meal composition. Gastroenterology. 1988;95:1294-301. 11. Sato S, Ohnishi K, Sugita S, et al. Splenic artery and superior mesenteric artery blood flow: nonsurgical Doppler US measurement in healthy subjects and patients with chronic liver disease. Radiology. 1987;164:347-52. 12. Gollop JH, Phillips SF, Melton LJ 3rd, et al. Epidemiologic aspects of Crohn's disease: a population based study in Olmsted county, Minnesota, 1943-1982. Gut. 1988;29:49-56. 13. Best WR, Becktel JM, Singleton JW, et al. Development of Crohn's disease activity index. Gastroenterology. 1976;70:439-44. 14. Gasche C, Scholmerich J, Brinskov J, et al. A simple classification of Crohn's disease: report of the Working Party for the World Congress of Gastroenterology, Vienna 1998. Inflam Bowel Dis. 2000;6:8-15. 15. Perko MJ, Just S. Duplex ultrasound of superior mesenteric artery: interobserver variability. J Ultrasound Med. 1993;12:259-63. 16. Maconi G, Radice E, Greco S, et al. Bowel ultrasound in Crohn's disease. Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2006;20:93-112. 17. Tarján Z, Tóth G, Györke T, et al. Ultrasound in Crohn's disease of the small bowel. Eur J Radiol. 2000;35:176-82. 18. Cooper AM, Braatvedt GD, Qamar MI, et al. Fasting and postprandial splanchnic blood flow is reduced by a somatostatin analogue (octreotide) in man. Clin Sci. 1991;81:168-75. 19. Qamar MI, Read AE, Skidmore R, et al. Transcutaneous Doppler ultrasound measurement of superior mesenteric artery blood flow in man. Gut. 1986;27:100-5. 20. Nakamura T, Moriyasu F, Ban N, et al. Quantitative measurement of abdominal arterial blood flow using image-directed Doppler ultrasonography: superior mesenteric, splenic and common hepatic arterial blood flow in normal adults. J Clin Ultrasound. 1989;17:261-8. 21. Giaffer MH, Tindale WB, Senior S, et al. Quantification of disease activity in Crohn's disease by computer analysis of Tc-99m hexamethyl propylene amine oxime (HMPAO) labeled leucocyte images. Gut. 1993;34:68-74. 22. Maconi G, Parente F, Bollani S, et al. Factors affecting splanchnic haemodynamics in Crohn's disease: a prospective controlled study using Doppler ultrasound. Gut. 1998;43:645-50. 23. Maconi G, Parente F, Bollani S, et al. Abdominal ultrasound in the assessment of extent and activity of Crohn's disease: clinical significance and implication of bowel wall thickening. Am J Gastroenterol, 1996;91:1604-9. 24. van Oostayen JA, Wasser MN, van Hogezand RA, et al. Activity of Crohn disease assessed by measurement of superior mesenteric artery flow with Doppler US. Radiology. 1994;193:551-4. 25. Byrne MF, Farrell MA, Abass S, et al. Assessment of Crohn's disease activity by Doppler sonography of the superior mesenteric artery, clinical evaluation and the Crohn's disease activity index: a prospective study. Clin Radiol. 2001;56:973-8. 26. Erden A, Cuhmur T, Ölçer T. Superior mesenteric artery Doppler waveform changes in response to inflammation of the ileocecal region. Abdom Imaging. 1997;22:483-6. 27. Sjekavica I, Barbaric-Babic V, Krznaric Z, et al. Assessment of Crohn's disease activity by Doppler ultrasound of superior mesenteric artery and mural arteries in thickened bowel wall: cross-sectional study. Croat Med J. 2007;48:822-30. 28. van Oostayen JA, Wasser MNJM, van Hogezand RA, et al. Doppler sonography evaluation of superior mesenteric artery flow to assess Crohn's disease activity: correlation with clinical evaluation, Crohn's disease activity index, and alpha-1antitrypsin clearance in feces. AJR Am J Roentgenol. 1997;168:429-43. 29. van Oostayen JA, Wasser MN, Griffioen G, et al. Activity of Crohn's disease assessed by measurement of superior mesenteric artery flow with Doppler ultrasound. Neth J Med. 1998;53:S3-8. 1. Mestre, Professora Assistente do Departamento de Anatomia e Imagem da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil 2. Doutores, Professores Adjuntos do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil 3. Mestre, Bioquímica no Hospital e Maternidade Terezinha de Jesus, Juiz de Gora, MG, Brasil 4. Livre-docente, Professor Titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil Endereço para correspondência: Dra. Fabiana Paiva Martins Avenida Professor Alfredo Balena, 189/803, Centro Belo Horizonte, MG, Brasil, 30130-100 E-mail: fabpaivamartins@gmail.com Recebido para publicação em 28/8/2012. Aceito, após revisão, em 1/7/2013. Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. |