INTRODUÇÃO
O abdome agudo é definido como uma condição de dor refratária e persistente que leva a paciente a procurar pronto-atendimento(1). Acredita-se que até 25% dos quadros de dor abdominal baixa admitidos nos pronto-socorros sejam causados por doença inflamatória pélvica aguda (DIPA)(1), sendo esta a causa mais comum em pacientes do sexo feminino(2).
A real prevalência de DIPA é provavelmente subestimada, porém é consenso que tem aumentado no decorrer dos últimos anos, provavelmente em razão do diagnóstico mais frequente e mudanças de hábitos das mulheres nas últimas décadas(3).
Essas taxas têm apresentado aumento expressivo nas faixas etárias mais baixas, proporcionalmente inversa à idade das pacientes, e principalmente entre 20 e 24 anos de idade(3).
A DIPA consiste em um espectro de anormalidades acometendo a tuba uterina, incluindo salpingite, piossalpinge e abscesso tubo-ovariano, como resultado de infecção ascendente de germes da vagina e colo uterino, mais comumente
Neissería gonorrheae e
Chlamydia trachomatis, sendo que esses dois patógenos são isolados em 12,2% dos casos(3). Na maioria dos casos ocorre infecção polimicrobiana, sendo isolados agentes endógenos como organismos anaeróbios e bactérias facultativas, ou mesmo componentes da microflora vaginal, associados a vaginose bacteriana(3).
Os principais fatores de risco envolvidos incluem múltiplos parceiros sexuais, alta frequência de coito, mulheres jovens e a presença de dispositivos intrauterinos. Os métodos de imagem e principalmente a ultrassonografia (US) têm desempenhado papel fundamental no diagnóstico de DIPA(1). Mais recentemente, com a disseminação e maior disponibilidade da tomografia computadorizada (TC) e da ressonância magnética (RM), estas ferramentas têm sido utilizadas para complementar o uso da US, mais frequentemente em casos duvidosos ou complicados(2).
Neste estudo apresentamos um ensaio iconográfico baseado na revisão de exames de TC e RM de paciente com quadro comprovado de DIPA, realizados entre janeiro de 2010 e dezembro de 2011, os quais foram interpretados em consenso por dois radiologistas.
ASPECTOS CLÍNICOS E LABORATORIAIS
O quadro de DIPA se caracteriza frequentemente por dor no baixo ventre e por mobilização do colo uterino e palpação dos anexos, podendo ou não se acompanhar de febre(3). O quadro clínico associado aos achados laboratoriais apresenta valores preditivos positivos de apenas 65% a 90%, mesmo nas mãos de profissionais mais experientes(3). Dessa maneira, o quadro pode muitas vezes ser confundido com apendicite aguda, sendo que a presença de corrimento vaginal com características mucopurulentas, em associação com alterações no exame de toque, ajuda a direcionar o diagnóstico(3).
Os principais achados laboratoriais incluem leucocitose, que é um achado inespecífico e elevado em apenas 44% das pacientes, e presença de marcadores inflamatórios, como proteína C reativa elevada, que por sua vez apresentam boa sensibilidade (74% a 93%), porém baixa especificidade (25% a 90%)(3). Recentemente, esfregaços vaginais foram analisados e mostraram alta sensibilidade (87% a 91%), bem como altos valores preditivos negativos para ausência de infecção do trato genital alto (94,5%)(3).
É importante que sempre se realize correlação com os níveis de Β-hCG para exclusão do diagnóstico de gravidez ectópica, mesmo com a paciente referindo sangramento recente(4).
ACHADOS DE IMAGEM
A TC e a RM podem ser úteis quando o quadro clínico é inespecífico, a US inconclusiva, ou quando há suspeita de complicações.
Os achados diferem dependendo do grau de acometimento e dentro do espectro de apresentações desta entidade, a qual pode ser dividida como segue.
Salpingite
Caracteriza-se por não haver dilatação das tubas, porém apresenta espessamento e realce pelo meio de contraste das paredes tubárias, associados a sinais inflamatórios adjacentes.
Esses sinais se manifestam à TC como densificação dos planos gordurosos anexiais, líquido livre na cavidade pélvica, bem como espessamento reacional de alças intestinais adjacentes(5) (Figura 1).
Figura 1. DIPA (salpingite) - TC da pelve. Observa-se realce anômalo e aumentado na região anexial esquerda, com aspecto serpiginoso, correspondendo à parede da tuba espessada e inflamada (setas cheias). Há ainda mínima quantidade de líquido ao redor da tuba. O ovário direito tem aspecto normal (setas vazadas). (A,B: cortes axiais na fase venosa de injeção do meio de contraste).
À RM os achados são semelhantes, e em virtude da sua melhor definição espacial das estruturas pélvicas, é possível definir o espessamento e realce parietal com maior detalhamento(6) (Figura 2).
Figura 2. DIPA (salpingite) - RM da pelve. Presença de formação serpiginosa na região anexial direita (setas em A, B e D), claramente separada do útero (estrelas em A e B), com intenso realce parietal pelo meio de contraste, caracterizando sua natureza inflamatória (seta em C). O aspecto em C é bastante sugestivo de tuba uterina com paredes espessadas. (A,B: plano axial T1 e T2, respectivamente; C: plano axial T1 com técnica de saturação de gordura após a injeção de contraste; D: plano coronal T2).
Piossalpinge
Na RM a estrutura tubária é identificada por alto sinal nas sequências ponderadas em T2, sem realce interno. Em T1 o sinal é variável, dependendo do conteúdo proteico/hemático. Ocorre realce parietal na sequência pós-contraste e aumento e densificação dos planos adiposos adjacentes(5)(Figura 3).
Figura 3. Abscesso tubo-ovariano - TC de abdome. Observa-se formação nodular com realce heterogêneo localizada na região anexial direita, que representa o ovário acometido por processo infeccioso (estrela em B). A tuba uterina encontra-se dilatada e com realce parietal, indicando salpingite ou piossalpinge (setas em A e B). (A,B: cortes axiais obtidos na fase portal após a injeção do meio de contraste).
Alguns diagnósticos diferenciais devem ser observados. Na hidrossalpinge, diferentemente da piossalpinge, não ocorre realce parietal da tuba pelo agente de contraste.
Outros diagnósticos, como apendicite e massas anexiais complexas, podem dificultar o diagnóstico diferencial(5).
Abscesso tubo-ovariano
Ocorre pela progressão do quadro infeccioso, com acometimento das estruturas pélvicas normais e formação de massa inflamatória envolvendo a tuba e o ovário. A ruptura dessa formação pode cursar com peritonite grave e potencial risco de morte(7).
Os achados tomográficos manifestam-se por massa anexial sólido-cística, com realce parietal e septos grosseiros exibindo realce(7).
A presença de gás no interior do processo inflamatório/infeccioso não é frequente, entretanto consiste em achado bastante específico(7) (Figura 4).
Figura 4. DIPA grave - TC de abdome/pelve (A,B) e RM da pelve (C,D). Observa-se extenso espessamento difuso do endométrio com presença de nível hidro-aéreo na cavidade uterina (setas em A e B). Associa-se coleção heterogênea anteriormente ao útero, com paredes espessadas e exibindo realce moderado pelo meio de contraste (estrela em A). A mesma paciente foi submetida a RM da pelve, observando-se material espesso na cavidade uterina (estrelas em C e D), bem como realce das estruturas anexiais (setas em D). (A,B: cortes axiais obtidos na fase portal de contraste; C: RM no plano sagital em T2; D: RM no plano axial em T1 com técnica de saturação de gordura, após a injeção do meio de contraste).
O deslocamento anterior do ligamento largo, observado na TC ou na RM, ocasionado pela posição posterior do meso-ovário, pode permitir a diferenciação entre abscesso tubo-ovariano e abscesso pélvico de outras origens(8).
Os sinais associados comumente encontrados são, principalmente, o espessamento e realce do peritônio e dos ligamentos uterinos. Pode ainda ocorrer envolvimento de estruturas adjacentes, como íleo, hidroureteronefrose e abscesso intraperitoneal secundário a ruptura(5) (Figura 5).
Figura 5. DIPA - TC de abdome e pelve. Extensa coleção multiloculada, com paredes espessas que exibem intenso realce, localizada na cavidade pélvica (estrelas em A e B). Notam-se também formações císticas enoveladas em fossas anexiais, correspondendo às tubas dilatadas e com conteúdo líquido. (A: corte axial na fase portal de contraste; B: reconstrução coronal também na fase portal).
Os achados na RM dependem do conteúdo hemático e proteico, apresentando sinal variável nas sequências ponderadas em T1, dependendo da quantidade desses componentes(9,10). Fino halo interno hipointenso em T1 junto à parede interna da coleção tem sido descrito recentemente e atribuído a tecido de granulação(5).
As imagens ponderadas em T2 demonstram alto sinal, com múltiplos septos internos grosseiros exibindo baixo sinal, bem como alto sinal da gordura peritoneal nas sequências T2 com saturação de gordura, correspondendo a edema(5). Esses septos, juntamente com a cápsula da coleção, exibem intenso realce pelo meio de contraste, associado a realce da gordura e das estruturas abdominais envolvidas(5)(Figura 6).
Figura 6. Abscesso tubo-ovariano - RM da pelve. Grande coleção anexial heterogênea (estrelas brancas em A a D) com paredes espessadas, que apresentam realce pelo meio de contraste e pregas finas internamente (setas cheias em A, C e D), o que é compatível com a tuba uterina dilatada. A parede da formação apresenta alto sinal em T1 (seta cheia em B), compatível com pequenos focos de hemorragia parietal. Há ainda líquido loculado no fundo de saco posterior (estrelas pretas em A e C) e intenso realce do peritônio na cavidade pélvica (setas vazadas em C e D). (A,B: plano axial T2 e T1, respectivamente; C,D: plano axial T1 com técnica de saturação de gordura após a injeção do meio de contraste).
Frequentemente observa-se um aspecto rendilhado da gordura peritoneal adjacente ao processo, que se relaciona às alterações fibroaderenciais(5).
CONCLUSÃO
A DIPA é uma afecção comum entre as mulheres e uma das principias causas de abdome agudo inflamatório. O seu diagnóstico é frequentemente confirmado pela US. Mais recentemente, a TC e a RM têm sido convocadas para complementação diagnóstica. Este fato é decorrente das frequentes complicações que acompanham o quadro e que podem dificultar a sua precisa avaliação não invasiva. No presente estudo procuramos ilustrar os principais achados de DIPA na TC e RM, ainda pouco conhecidos. Nesse sentido, o crescente papel da TC e RM na avaliação do paciente com abdome agudo, especificamente de origem ginecológica, requer que o radiologista se familiarize com os aspectos de imagem da DIPA, complementando o uso da US.
REFERÊNCIAS
1. Samraj GP, Curry RW Jr. Acute pelvic pain: evaluation and management. Compr Ther. 2004;30:173-84.
2. Bennett GL, Slywotzky CM, Giovanniello G. Gynecologic causes of acute pelvic pain: spectrum of CT findings. Radiographics. 2002;22:785-801.
3. Lareau SM, Beigi RH. Pelvic inflammatory disease and tubo-ovarian abscess. Infect Dis Clin North Am. 2008;22:693-708.
4. Potter AW, Chandrasekhar CA. US and CT evaluation of acute pelvic pain of gynecologic origin in nonpregnant premenopausal patients. Radiographics. 2008;28:1645-59.
5. Rezvani M, Shaaban AM. Fallopian tube disease in the nonpregnant patient. Radiographics. 2011;31:527-48.
6. Heverhagen JT, Klose KJ. MR imaging for acute lower abdominal and pelvic pain. Radiographics. 2009;29:1781-96.
7. Birnbaum BA, Jeffrey RB Jr. CT and sonographic evaluation of acute right lower quadrant abdominal pain. AJR Am J Roentgenol. 1998;170:361-71.
8. Wilbur AC, Aizenstein RI, Napp TE. CT findings in tuboovarian abscess. AJR Am J Roentgenol. 1992;158:575-9.
9. Tukeva TA, Aronen HJ, Karjalainen PT, et al. MR imaging in pelvic inflammatory disease: comparison with laparoscopy and US. Radiology. 1999;210:209-16.
10. Horrow MM. Ultrasound of pelvic inflammatory disease. Ultrasound Q. 2004;20:171-9.
1. Mestre, Médico Radiologista Especializando do Departamento de Diagnóstico por Imagem da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), São Paulo, SP, Brasil.
2. Mestre, Médico Radiologista Pós-graduando do Departamento de Diagnóstico por Imagem da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), São Paulo, SP, Brasil.
3. Livre-docente, Professor Adjunto do Departamento de Diagnóstico por Imagem da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), São Paulo, SP Brasil.
Endereço para correspondência:
Dr. Gluseppe D'Ippollto
Departamento de Diagnóstico por Imagem - EPM-Unifesp
Rua Napoleão de Barros, 800, Vila Clementino
São Paulo, SP Brasil, 04024-002
E-mail: giuseppe_dr@uol.com.br
Recebido para publicação em 13/2/2012.
Aceito, após revisão, em 28/6/2012.
* Trabalho realizado no Departamento de Diagnóstico por Imagem da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), São Paulo, SP Brasil.