Paciente do sexo feminino, 11 anos de idade, com dor lombar e hematúria macroscópica intermitente com três meses de evolução, algumas vezes com coágulos. Não apresentava comorbidades e o exame físico foi normal. Todos os exames laboratoriais sanguíneos, incluindo hemograma, coagulograma, proteinograma, FAN, C3, PCR e bioquímica foram normais. O exame simples de urina apresentou-se de cor avermelhada com presença de hemoglobina e hemácias. As pesquisas de bacilos álcool-ácido resistentes e hemácias disformes foram negativas. A urina de 24 horas mostrou discreta proteinúria.
Foi realizada angiotomografia computadorizada com multidetectores (angio-TCMD) do abdome (Figura 1). A ureterocistoscopia mostrou sangramento intermitente com coágulos pelo meato ureteral esquerdo.
Figura 1. Imagens de angio-TCMD do abdome no plano axial (A) e reformatação MIP (projeção de intensidade máxima) no plano sagital (B).
Descrição das imagens
Figura 1. Imagens de angio-TCMD do abdome no plano axial (
A) e reformatação MIP (projeção de intensidade máxima) no plano sagital (
B) mostram a compressão da veia renal esquerda (VRE) entre a aorta e a artéria mesentérica superior (AMS) devido ao estreitamento do espaço entre estas duas artérias, caracterizando o fenômeno do quebra-nozes. Tanto a distância (
A) quanto o ângulo aorto-mesentérico (
B) estão reduzidos, medindo 3 mm e cerca de 30°, respectivamente.
Diagnóstico: Síndrome do quebra-nozes.
COMENTÁRIOS
O fenômeno do quebra-nozes (FQN) consiste na compressão da VRE, geralmente ocasionada por estreitamento do ângulo entre a aorta e a AMS. Nesta situação, é conhecido como quebra-nozes anterior, que corresponde à anatomia observada em nossa paciente. É descrito também o FQN posterior, em que a veia renal retroaórtica ou circum-aórtica é comprimida entre a aorta e o corpo vertebral. Quando associado a manifestações clínicas, ocorre a síndrome do quebra-nozes (SQN). A anatomia do FQN sem manifestação clínica pode representar uma variação da normalidade(1,2).
O uso do termo quebra-nozes (
nutcracker) geralmente é creditado a de Schepper, que, em 1972, relatou dois casos de pacientes com hematúria e compressão da VRE, embora tenham sido Chait et al., em 1971, quem primeiro utilizaram a expressão(3,4). A Figura 2 ilustra a analogia com o quebra-nozes.
Figura 2. Analogia com o quebra-nozes (A,B). Noz = VRE (setas azuis); perna direita do quebra-nozes = aorta (setas vermelhas); perna esquerda do quebra-nozes = AMS (setas amarelas).
A SQN é mais frequente em mulheres jovens, e em razão da variabilidade dos sintomas ou consenso nos critérios diagnósticos, sua prevalência é desconhecida, mas possivelmente é uma entidade subdiagnosticada. As manifestações clínicas mais comuns são hematúria, dor lombar ou abdominal, varizes pélvicas, varicoceles e proteinúria em graus variados. A hematúria ocorre por ruptura das finas paredes das colaterais venosas no interior do sistema calicinal adjacente, em decorrência da hipertensão venosa secundária à compressão da VRE(1,5).
No caso da nossa paciente, o diagnóstico da SQN foi realizado após exclusão de outras possíveis causas de hematúria, visualização de sangramento pelo meato ureteral esquerdo à ureterocistoscopia e caracterização dos aspectos anatômicos do FQN pela angio-TCMD.
Vários exames de imagem são utilizados na propedêutica diagnóstica da SQN, como a ultrassonografia com Doppler, a angio-TCMD, a angiorressonância magnética e a venografia. Embora a venografia com a medida da diferença de pressão entre a VRE e a veia cava superior seja considerada o método mais informativo para o diagnóstico, é invasiva e geralmente não realizada em pacientes com sintomas leves, bem como nas crianças. Além disso, não é totalmente confiável, pois pode ocorrer sobreposição de níveis pressóricos entre pacientes assintomáticos e aqueles com a SQN(1,5).
A angio-TCMD com as reformatações multiplanares permite a avaliação da relação entre aorta, AMS e VRE, sendo de fácil mensuração tanto o ângulo aorto-mesentérico quanto a distância entre a AMS e aorta. Mostrou-se superior à venografia e à ultrassonografia na identificação da compressão da VRE(6).
A distância e o ângulo aorto-mesentérico são muito variáveis, porém, são menores nos pacientes com a SQN, quando comparados com pacientes assintomáticos. Normalmente, o ângulo e a distância entre a aorta e a AMS no nível da VRE em pacientes sintomáticos são de 39,3 ± 4,3° e 3,1 ± 0,2 mm, respectivamente. Já nos assintomáticos, são de 90 ± 10° e 12 ± 1,8 mm(5). A paciente em questão apresentava ângulo com cerca de 30° e distância de 3 mm, achados compatíveis com a anatomia do FQN.
O tratamento da SQN depende da gravidade dos sintomas. Em pacientes menores de 18 anos com hematúria leve a moderada, a melhor opção é o tratamento conservador com vigilância clínica, pois há resolução completa em 75% dos casos no período de dois anos(7), tendo sido a conduta adotada em nossa paciente.
Conclui-se que a angio-TCMD pode ser utilizada como um método não invasivo bastante confiável para caracterizar a anatomia do FQN, permitindo o diagnóstico da SQN nos pacientes com apresentação clínica compatível.
REFERÊNCIAS
1. Kurklinsky AK, Rooke TW. Nutcracker phenomenon and nutcracker syndrome. Mayo Clin Proc. 2010;85:552–9.
2. Shin JI, Lee JS. Nutcracker phenomenon or nutcracker syndrome? Nephrol Dial Transplant. 2005;20:2015.
3. de Schepper A."Nutcracker" phenomenon of the renal vein and venous pathology of the left kidney. J Belge Radiol. 1972;55:507–11.
4. Chait A, Matasar KW, Fabian CE, et al. Vascular impressions on the ureters. Am J Roentgenol Radium Ther Nucl Med. 1971;111:729–49.
5. Fu WJ, Hong BF, Gao JP, et al. Nutcracker phenomenon: a new diagnostic method of multislice computed tomography angiography. Int J Urol. 2006;13:870–3.
6. Shokeir AA, el-Diasty TA, Ghoneim MA. The nutcracker syndrome: new methods of diagnosis and treatment. Br J Urol. 1994;74:139–43.
7. Shin JI, Park JM, Lee SM, et al. Factors affecting spontaneous resolution of hematuria in childhood nutcracker syndrome. Pediatr Nephrol. 2005;20:609–13.
1. Médico Residente de Radiologia e Diagnóstico por Imagem do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG), Goiânia, GO, Brasil.
2. Membro Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR), Professor Substituto do Departamento de Radiologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG), Goiânia, GO, Brasil.
3. Membro Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR), Médica Radiologista do Departamento de Radiologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG), Goiânia, GO, Brasil.
4. Membros Titulares do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR), Médicos Radiologistas da Clínica São Camilo, Goiânia, GO, Brasil.
5. Doutor, Professor Adjunto do Departamento de Radiologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HCUFG), Goiânia, GO, Brasil.
Endereço para correspondência:
Dr. Hebert Ferro Monteiro
Rua Longitudinal, Qd J, Lt 1-5, Ed. Condomínio dos Guaranis, ap. 501A, Setor Leste Vila Nova.
Goiânia, GO, Brasil, 74633-300
E-mail: hebertmonteiro@hotmail.com
Trabalho realizado no Departamento de Radiologia e Diagnóstico por Imagem do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG), Goiânia, GO, Brasil.