INTRODUÇÃO
A ascite é uma condição rara no neonato e geralmente pode apresentar várias etiologias, sendo que a de natureza urinaria é uma causa frequente(1,2). A origem da ascite urinária, na maioria dos casos relatados, deve-se à presença de válvula de uretra posterior, determinando ruptura da bexiga urinária e consequente ascite(3). De acordo com nossa revisão da literatura médica, encontramos somente um relato de caso de ascite urinária por ruptura de cálice renal em um recém-nascido com válvula de uretra posterior(3). No caso acima citado, o diagnóstico desta complicação foi feito por meio da cistouretrografia miccional.
Descrevemos um relato de caso de recém-nascido com ascite urinária consequente a ruptura de cálice renal em paciente com válvula de uretra posterior, demonstrada por ultrassonografia (US).
RELATO DO CASO
Recm-nascido de parto normal, do sexo masculino, com peso de 2.815 gramas, tendo recebido Apgar 8 e 9 no primeiro e quinto minutos, respectivamente. Recebeu alta hospitalar com 48 horas de vida, não apresentando intercorrências neste período.
Retornou ao serviço de emergência com nove dias de vida, por causa de um quadro de distensão abdominal progressiva, mais evidente nos últimos três dias. Não havia queixa de vômitos, apenas um episódio de regurgitação no dia anterior.
Ao exame físico apresentava distensão abdominal importante, mas o abdome era indolor à palpação e aparentemente sem visceromegalias. Ruídos hidroaéreos estavam presentes e o sinal de piparote era positivo.
Os exames de sangue pré-natais da mãe foram normais. Três exames de US obsttricos prvios (aos 4, 7 e 8 meses) não demonstraram anormalidades fetais. A mãe negou consanguinidade e/ou doenças nos outros três filhos.
Foi realizada radiografia simples de abdome, logo após a admissão da criança, que demonstrou presença de ascite (Figura 1). O exame de US de abdome revelou ascite volumosa com grumos, rins apresentando parênquima de espessura preservada e importante dilatação das cavidades coletoras. Este exame evidenciou, também, ruptura do cálice do grupo superior do rim esquerdo e líquido perirrenal (Figura 2), bexiga urinária pouco repleta, com paredes levemente espessadas.
Figura 1. Radiografia simples do abdome em decúbito dorsal mostra alças de intestino delgado centralizadas devido a ascite maciça (setas).
Figura 2. Ultrassonografia mostra ruptura do sistema coletor (setas) e extravasamento líquido perirrenal (cabeças de setas).
O paciente foi então submetido a uma cistouretrografia miccional, que revelou bexiga com capacidade normal, de contornos trabeculados e formações pseudodiverticulares (bexiga de esforço). Havia refluxo vesicoureteral à esquerda grau V, representado por dilatação importante do sistema coletor e do ureter deste lado (Figuras 3A e 3B). Ocorreu extravasamento do meio de contraste para o espaço perifrico esquerdo, havendo acúmulo localizado junto ao polo superior do rim, e posteriormente extravasamento para a cavidade peritoneal. Observou- se dilatação da uretra posterior (Figura 3B). Não houve refluxo vesicoureteral à direita.
Figura 3. A: Cistouretrografia miccional mostra refluxo maciço (setas menores), extravasamento de contraste para o espaço perirrenal (setas maiores) e dilatação da uretra posterior com transição abrupta de calibre devido a válvula uretral (cabeças de setas). B: Cistouretrografia miccional com o paciente em decúbito ventral evidencia melhor o extravasamento perirrenal, predominando em sítio anterossuperior ao rim (setas).
A criança foi submetida a ureterostomia cutânea bilateral e cistoscopia. O paciente recebeu alta hospitalar em bom estado geral, ganhando peso, com hemograma e eletrólitos normais.
DISCUSSÃO
A ascite do recém-nascido é um evento raro que apresenta várias causas, tais como natureza biliar, doença hepática, doença cardíaca, quilosa, infecciosa, urinária ou, ainda, podendo ser de natureza desconhecida( 3–7). Diante disso, estabelecer o diagnóstico correto é um desafio, que muitas vezes é definido pelos exames de imagem: cistouretrografia miccional, US e cintilografia com Tc-99m. Estabelecer o diagnóstico preciso da causa e de suas complicações é fundamental para o tratamento correto e para a boa evolução do paciente.
Entre as causas acima citadas, a de natureza urinária é uma das mais comuns. Os casos de ascite urinária relatados geralmente estão relacionados a ruptura de bexiga urinária secundária a válvula de uretra posterior em meninos(1–4). Este diagnóstico é feito após extensa investigação e definido pela cistouretrografia miccional(1).
De acordo com nossa revisão da literatura médica, encontramos somente um relato de um caso de ascite de natureza urinária com ruptura de cálice renal, determinada por válvula de uretra posterior, em que o diagnóstico foi definido por meio de cistouretrografia miccional(3).
O caso aqui relatado torna-se original pelo fato de a ascite ter ocorrido devido a ruptura de cálice renal e o diagnóstico ter sido definido por meio de exame ultrassonográfico.
Em conclusão, nos casos de ascite urinária do neonato por ruptura de cálice a US pode demonstrar a ruptura direcionando a investigação para um exame específico, no caso a cistouretrografia miccional.
REFERÊNCIAS
1. Griscom NT, Colodny AH, Rosenberg HK, et al. Diagnostic aspects of neonatal ascites: report of 27 cases. AJR Am J Roentgenol. 1977;128:961–9.
2. Huang CJ, Cheng YR. Urinary ascites in young infants – report of 9 cases. J Singapore Paediatr Soc. 1990;32:121–4.
3. Ahmed S, Borghol M, Hugosson C. Urinoma and urinary ascites secondary to calyceal perforation in neonatal posterior urethral valves. Br J Urol. 1997;79:991–2.
4. Scott TW. Urinary ascites secondary to posterior urethral valves. J Urol. 1976;116:87–91.
5. Haller JO, Condon VR, Berdon WE, et al. Spontaneous perforation of the common bile duct in children. Radiology. 1989;172:621–4.
6. Runyon BA. Bacterial infections in patients with cirrhosis. J Hepatol. 1993;18:271–2.
7. Clarke HS Jr, Mills ME, Parres JA, et al. The hyponatremia of neonatal urinary ascites: clinical observations, experimental confirmation and proposed mechanism. J Urol. 1993;150(2 Pt 2):778– 81.
1. Doutor, Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Médico Radiologista do Hospital São Lucas, Porto Alegre, RS, Brasil.
2. Doutores, Professores Adjuntos do Departamento de Pediatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.
3. Médica Gastrenterologista Pediátrica, Aluna de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Pediatria e Saúde da Criança da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.
4. Médica Radiologista do Hospital São Lucas, Aluna de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Pediatria e Saúde da Criança da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.
Endereço para correspondência:
Dr. Matteo Baldisserotto
Avenida Luiz Manoel Gonzaga, 58, ap. 1201, Petrópolis
Porto Alegre, RS, Brasil, 90470-280
E-mail: matteob@terra.com.br
Recebido para publicação em 5/6/2010.
Aceito, após revisão, em 1/10/2010.
* Trabalho realizado no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.