ARTIGO ORIGINAL
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Autho(rs): Vinicius França de Mendonça, Maria Tereza Machado de Paula, César Fernandes, Edson Mendes Boasquevisque |
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Descritores: Doença de Gaucher. Radiologia. Alterações ósseas. |
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Resumo: INTRODUÇÃO A doença de Gaucher é uma desordem genética causada pela deficiência da enzima glicocerebrosidase, responsável pela degradação dos glicolipídios, resultando no acúmulo secundário de glicocerebrosídeos dentro dos fagócitos do sistema monócito-macrófago. Atinge órgãos como fígado, baço, linfonodos, medula óssea, podendo também acometer o sistema nervoso central e os pulmões(1-8). A doença é, em geral, descoberta na infância, mas pode tornar-se evidente tanto na vida adulta como em idade muito precoce(2). Há predominância em judeus, sem diferença entre os sexos(1,3,4). Existem três variantes clínicas distintas. A tipo 1, forma adulta ou crônica não-neuropática, é a mais freqüente, representando 99% dos casos. Apresenta início dos sintomas em idades muito variáveis, caracterizando-se por hepatoesplenomegalia, anemia, trombocitopenia e alterações ósseas(1,3,9). A tipo 2, forma infantil ou neuropática aguda, é a mais rara, apresentando envolvimento do sistema nervoso central e morte antes dos primeiros dois anos de vida(1,3,7). Os sintomas iniciam alguns meses após o nascimento, com retroflexão da cabeça, estrabismo e hipertonicidade muscular, com crescente e acentuado aumento do tamanho do baço e fígado. As manifestações neurológicas são resultantes do comprometimento do tronco cerebral e pares cranianos. Existem arqueamento acentuado do pescoço, retração dos lábios, trismo, espasmo laríngeo com tosse crônica e estridor, rigidez espástica dos membros, convulsão e retardo mental. O óbito surge por infecção respiratória(2). A tipo 3, conhecida como forma juvenil ou subaguda, mostra sinais sistêmicos crônicos da doença e envolvimento progressivo do sistema nervoso central, que pode iniciar na infância ou adolescência. As manifestações clínicas incluem retardo do crescimento, hiperesplenismo e alterações esqueléticas(2,3,9). O diagnóstico da doença de Gaucher é feito pela determinação da atividade da enzima glicocerebrosidase. Em outros casos, quando na ausência de suspeição clínica, o diagnóstico poderá ser feito por punção do baço, fígado, linfonodos ou medula óssea, que demonstrará as células de Gaucher(1,3,4). Manifestações radiológicas Os achados radiográficos no esqueleto demonstram o grau de infiltração e substituição da medula óssea pelas células de Gaucher, resultando em perda do trabeculado ósseo e diminuição da densidade, mais comuns na epífise e metáfise dos ossos longos(4,10). Uma das características mais comuns é o alargamento ósseo associado ao afilamento da cortical, causando alteração da concavidade, abaulando o contorno. É mais bem visto na porção distal do fêmur e resulta na clássica imagem em "frasco de Erlenmeyer"(3,4,9). Na superfície endosteal ocorre esclerose ou erosão do córtex(10). Este achado não é específico da doença de Gaucher, podendo ser encontrado nas anemias hemolíticas, leucemia, hipertireoidismo, fraturas antigas consolidadas e na doença de Albers-Schonberg. O envolvimento da mandíbula, crânio, mãos e pés é raro(4). A infiltração medular, com subseqüente afilamento cortical, enfraquece a estrutura óssea, tornando-a suscetível a fraturas(4). As vértebras são mais comumente acometidas, causando o colapso do corpo, descrito como vértebra plana e fazendo diagnóstico diferencial com o granuloma eosinofílico(3,10). Osteopenia generalizada pode ocorrer e ser extrema. Nos ossos longos a aparência é de numerosas áreas de osteólise circunscritas simulando lesão metastática, mieloma múltiplo, fibroma não-ossificante, displasia fibrosa, mielofibrose e osteossarcoma(3,4). As fraturas nesses ossos geralmente ocorrem nas áreas de afilamento cortical secundário a reabsorção endosteal(10). Alterações na cabeça do fêmur com achatamento e esclerose ocorrem comumente na doença de Gaucher. Os achados são de osteonecrose, mas a etiologia é incerta, podendo ser secundária a obstrução venosa ou arterial por células de Gaucher, insuficiência vascular ou compressão extrínseca. Em crianças, o aspecto lembra a doença de Calvé-Legg-Perthes, e no adulto simula osteoartrite crônica ou artrite tuberculosa(3,10). O envolvimento articular é freqüente, sendo o quadril o mais acometido, seguido de ombro, joelho e articulações intervertebrais. A infiltração óssea pelos glicocerebrosídeos levam a necrose, colapso e subseqüente destruição da cartilagem articular adjacente. O estresse contínuo da articulação pode levar à completa obliteração do espaço articular(3). O presente estudo tem o objetivo de analisar os achados radiográficos simples do esqueleto de pacientes com a doença de Gaucher.
MATERIAL E MÉTODOS Estudo retrospectivo de exames de 32 pacientes com diagnóstico de doença de Gaucher, matriculados no Hemorio. O grupo foi composto de 14 homens e 18 mulheres, com idades entre quatro e 62 anos, e média de 28,9 anos (Gráfico 1). Todos os pacientes foram submetidos a radiografias simples do esqueleto central e apendicular, realizadas em aparelho fixo de 500 mA. Os exames laboratoriais incluíram hemograma completo, bioquímica do sangue, anti-HIV e dosagem da enzima glicocerebrosidase. O diagnóstico de certeza foi firmado com base na dosagem enzimática.
RESULTADOS A Tabela 1 e as Figuras 1 a 6 resumem os principais achados radiológicos deste estudo. A análise demonstrou osteopenia difusa em todos os casos. Deformidade em "frasco de Erlenmeyer", descrita como o achado radiológico mais característico da doença de Gaucher, foi vista em 93,7% dos doentes (Figura 1). Alterações articulares acometeram 40,6% dos doentes (Figura 3). Necrose da cabeça do fêmur (Figura 2) e lesões líticas (Figuras 4A e 4B) representaram, cada um, 28,1% das alterações observadas. Fraturas patológicas foram encontradas em 9,3% dos casos (Figuras 4B e 5) e necrose da cabeça do úmero foi encontrada em 6,2% dos casos (Figura 6).
DISCUSSÃO Este estudo teve como proposição básica analisar as manifestações ósseas da doença de Gaucher, com enfoque na radiologia convencional. Os resultados observados no estudo de 32 pacientes de ambos os sexos e em diferentes faixas etárias permitiram examinar os sinais radiográficos do esqueleto referidos na literatura, sendo mais freqüente a osteopenia difusa, encontrada em todos os casos. É importante lembrar que a presença desta alteração denota o grau de substituição e infiltração da medula óssea pelas células de Gaucher, apesar de não ser o achado mais característico da doença(3,4,10). A deformidade em "frasco de Erlenmeyer" representa a principal manifestação radiológica, podendo também ser encontrada nas metáfises de outros ossos longos(3,4,9). Os demais achados, que classificamos como seqüenciais, tiveram freqüência menor, porém não menos expressiva, e são decorrentes de complicações evolutivas da doença; os mais comuns foram alterações articulares, necrose de cabeça do fêmur e lesões líticas circunscritas. Outras alterações, como a necrose da cabeça do úmero e as fraturas patológicas, foram porcentualmente menores no grupo estudado. Foi observado que algumas manifestações radiográficas apresentam-se de forma bastante sutil, o que torna de extrema importância a qualidade técnica do exame. Dentre estas, encontramos pequenas alterações do contorno ósseo e discretas diminuições de densidade. Mesmo com o grande avanço tecnológico que se processa nos métodos de diagnóstico por imagem, a radiologia convencional tem papel de relevante importância como método complementar na avaliação das alterações esqueléticas na doença de Gaucher. Portanto, o médico radiologista deve ter o conhecimento específico das alterações radiográficas comumente encontradas nessa doença, para poder incluí-la no diagnóstico diferencial das enfermidades que comprometem o esqueleto. Vale ressaltar que a conclusão diagnóstica deverá ser firmada a partir de determinação da atividade da enzima glicocerebrosidase ou pela demonstração das células de Gaucher.
REFERÊNCIAS 1. Beutler E. Gaucher's disease. N Engl J Med 1991;325:1354-60. [ ] 2. Canzi W, Winik AP. Doença de Gaucher. Rev Méd Hosp São Vicente 1994;6:49-51. [ ] 3. Pastakia B, Brower AC, Chang VH, Barranger JA. Skeletal manifestations of Gaucher's disease. Semin Roentgenol 1986;21:264-74. [ ] 4. Levin B. Gaucher's disease: clinical and roentgenologic manifestations. AJR 1961;85:685-96. [ ] 5. Karabulut N, Ahmetoglu A, Ariyürek M, Erol C, Gürakan F. Obliteration of maxillary and sphenoid sinuses in Gaucher's disease. Br J Radiol 1997;70:533-5. [ ] 6. Hainaux B, Christophe C, Hanquinet S, Perlmutter N. Gaucher's disease: plain radiography, US, CT and MR diagnosis of lungs, bone and liver lesions. Pediatr Radiol 1992;22:78-9. [ ] 7. Tunaci A, Berkmen YM, Gökmen E. Pulmonary Gaucher's disease: high-resolution computed tomographic features. Pediatr Radiol 1995;25: 237-8. [ ] 8. Aydin K, Karabulut N, Demirkasik F, Arat A. Pulmonary involvement in adult Gaucher's disease: high-resolution CT appearance. Br J Radiol 1997;70:93-5. [ ] 9. Greenspan A. Radiologia ortopédica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1996. [ ] 10. Stowens DW, Teitelbaum SL, Kahn AJ, Barranger JA. Skeletal complications of Gaucher's disease. Medicine (Baltimore) 1985;64:310-22. [ ]
* Estudo realizado com pacientes do Instituto Estadual de Hematologia do Rio de Janeiro (Hemorio), Rio de Janeiro, RJ. |