ENSAIO ICONOGRÁFICO
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Autho(rs): Gustavo de Souza Portes Meirelles, Giuseppe D'Ippolito |
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Descritores: Fígado, Tomografia computadorizada helicoidal, Erros de diagnóstico |
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Resumo:
INTRODUÇÃO Nos dias atuais, a tomografia computadorizada (TC) é um método rotineiro na avaliação do fígado, com ampla aceitação para a detecção e caracterização de tumores e com grande importância no planejamento clínico-cirúrgico e no prognóstico da doença(1). O advento dos aparelhos de TC helicoidais resultou em importante melhora na avaliação hepática, ao demonstrar, com maior eficácia, lesões parenquimatosas, o que levou a uma maior utilização do método. No entanto, várias armadilhas diagnósticas surgiram, principalmente ligadas a defeitos de perfusão decorrentes da rápida injeção do meio de contraste e aquisição das imagens, dificultando a análise e prejudicando a diferenciação entre lesões e pseudolesões(1?4). Consideramos pseudolesões hepáticas aquelas imagens que simulam lesões hepáticas focais, podendo levar a diagnósticos equivocados. O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão dessas pseudolesões, propondo uma classificação sistemática por meio de casos ilustrativos e estratégias para diferenciá-las de lesões parenquimatosas.
CLASSIFICAÇÃO DAS PSEUDOLESÕES HEPÁTICAS Várias são as pseudolesões hepáticas encontradas na TC helicoidal. As principais encontram-se listadas no Quadro 1.
1 ? Fissuras hepáticas acessórias Existem fissuras hepáticas incompletas, causadas por invaginações do diafragma, que podem subdividir o parênquima hepático (Figura 1). Encontram-se praticamente limitadas aos segmentos VII e VIII, próximas à cúpula diafragmática. Tornam-se mais proeminentes com a inspiração profunda e são mais comuns em pacientes enfisematosos e idosos(5).
O conhecimento da sua morfologia e distribuição evita a maior parte dos erros diagnósticos. Pode-se ainda repetir o exame com inspiração superficial, o que promove atenuação ou até seu desaparecimento, ou usar reconstruções coronais e sagitais, que permitem definir a origem diafragmática da imagem(5,6). 2 ? Vasos não opacificados Nas fases precoces de contrastação, veias hepáticas e ramos portais podem não ser opacificados, simulando lesões focais hipovasculares (Figura 2). Uma nova aquisição das imagens e a análise em conjunto das fases arterial e portal permitem solucionar o problema. Além disso, a diferenciação pode ser feita com a determinação da distribuição anatômica, trajeto e ramificações das estruturas venosas(3,7).
3 ? Efeito de volume parcial As causas mais comuns são a flexura hepática, a cúpula diafragmática direita e a vesícula biliar (Figura 3). Lesões do pólo superior do rim direito, da adrenal direita e da porção descendente do duodeno podem ser outras causas de erro. O reconhecimento dessas pseudolesões é feito pela análise dos cortes adjacentes e, em casos de dúvidas, por meio de reconstruções coronais e sagitais(8).
4 ? Alterações perfusionais hepáticas Podem ser focais ou difusas, por hiper ou hipoperfusão. Têm causas diversas, resultando de obstrução ao fluxo venoso sistêmico ou hepático, irrigação hepática anômala, variações anatômicas ou processos inflamatórios, alterações transitórias na perfusão hepática ou anastomoses arterioportais(9,10). 4.1 ? Alterações perfusionais focais por obstrução da veia cava superior Na oclusão da veia cava superior (VCS), o fluxo dos membros superiores segue vias acessórias, como o sistema ázigos-hemiázigos, o plexo venoso vertebral, as veias mamárias internas e torácicas laterais(11,12). Há contrastação precoce e dilatação dessas vias e realce intenso na fase arterial da porção anterior do segmento IV, que recebe sangue contrastado das colaterais (Figura 4). A diferenciação entre realce precoce e lesão parenquimatosa é possível pela análise da sua localização e aspecto característico, além da história de oclusão da VCS e da atenuação normal do segmento IV na fase portal(6,11). O exame tomográfico com contraste do tórax permite confirmar esta hipótese (Figura 4).
4.2 ? Alterações perfusionais focais por processos inflamatórios Áreas de realce hepático precoce e intenso podem ser evidenciadas em processos inflamatórios, principalmente na colecistite aguda (Figura 5), simulando o realce de lesões como hemangioma, hiperplasia nodular focal, metástases hipervasculares ou carcinoma hepatocelular(13).
A diferenciação com lesões hepáticas primárias baseia-se na associação com o processo inflamatório, além do aspecto curvilíneo do realce e da localização perivesicular típica(13). Deve-se lembrar ainda que nos cortes tardios a área de realce anômalo é normal(14). É interessante observar que a área de parênquima hiperperfundido ao redor da vesícula biliar não traduz extensão do processo inflamatório da vesícula para o fígado. 4.3 ? Alterações perfusionais focais por retorno venoso anômalo O fígado pode ter uma vascularização suplementar por veias sistêmicas. Áreas irrigadas pelas vias suplementares apresentam realce intenso na fase arterial, com realce igual ou inferior ao do parênquima na fase portal(4,11). A alteração de perfusão na face posterior do segmento IV é uma das mais conhecidas (Figura 6), estando ligada a irrigação anômala através das veias gástricas, principalmente da direita(15).
São comuns alterações perfusionais laterais ao ligamento falciforme (Figura 7), por irrigação aberrante pelas veias epigástricas e paraumbilical, exceto em cirróticos com fluxo hepatofugal, nos quais se deve sempre considerar a possibilidade de carcinoma hepatocelular(16?18).
Alterações perfusionais podem também existir na fossa da vesícula biliar, por irrigação anômala a partir de veias císticas(15, 17?19), e na região subcapsular, a partir de veias subcapsulares (Figura 8)(20,21).
4.4 ? Alterações perfusionais focais por anastomoses arteriovenosas Na cirrose hepática, pequenas anastomoses arterioportais espontâneas podem causar pseudolesões centrais, com realce intenso na fase arterial (Figura 9). Nos cortes tardios as pseudolesões não devem aparecer, o que auxilia na diferenciação com o carcinoma hepatocelular(22,23). Tumores hepáticos benignos e malignos (Figura 10), trauma e procedimentos invasivos podem causar anastomoses arterioportais(24).
4.5 ? Alterações perfusionais focais por tromboses venosas Tumores hepáticos malignos e, mais raramente, benignos podem ser causa de obstrução ao fluxo portal, com alterações de perfusão lobares, segmentares ou subsegmentares (Figura 11). Em alguns casos não se vê a lesão hepática focal, apenas a alteração perfusional (Figura 12)(3,4,11).
4.6 ? Alterações perfusionais focais por inversão do fluxo portal Lesões expansivas podem comprimir o parênquima hepático, com inversão focal do fluxo portal e maior realce local na fase portal, muitas vezes interpretado como extensão da lesão (Figura 13). Essas alterações perfusionais são em banda, sem distribuição lobar ou segmentar, restritas ao local de compressão do parênquima(25).
4.7 ? Outras alterações perfusionais focais Costelas muito arqueadas podem causar alterações perfusionais no local de compressão no parênquima hepático(19,26). Neoplasias hipervasculares podem determinar hipoperfusão parenquimatosa adjacente(4,11). 5 ? Alterações perfusionais difusas Algumas condições clínicas podem provocar alterações de perfusão difusas, entre elas a cirrose, a síndrome de Budd-Chiari, a insuficiência cardíaca congestiva, a pericardite constritiva e a fibrose mediastinal(4,9,11,14). A síndrome de Budd-Chiari é uma das causas mais conhecidas de alterações perfusionais difusas, promovendo inversão do fluxo portal e realce heterogêneo do parênquima hepático (Figura 14)(11).
6 ? Esteatose focal Geralmente difusa, mas ocasionalmente focal, é uma das causas mais freqüentes de pseudolesão hepática (Figura 15). Suas localizações mais típicas são as adjacências do ligamento falciforme, regiões subcapsulares, perivesiculares, lobo caudado e porção posterior do segmento IV(27,28).
O depósito de gordura pode ser rapidamente reversível e transitório, desaparecendo em exames posteriores, principalmente se afastado o fator clínico causador da esteatose (Figura 16).
Quando a esteatose é geográfica (Figura 17) ou multinodular (Figura 18), o diagnóstico diferencial inclui o carcinoma hepatocelular, abscessos, metástases e hemangiomas(27,28).
A diferenciação entre esteatose e lesão neoplásica é de grande importância. A esteatose não tem efeito expansivo, tem atenuação muito baixa e geralmente apresenta vasos hepáticos e portais não distorcidos no seu interior, ao contrário de lesões do parênquima. Porém, é importante observar que, eventualmente, metástases hepáticas confluentes podem envolver vasos hepáticos sem distorcê-los. A ressonância magnética tem grande valor no diagnóstico da esteatose, utilizando-se seqüências que suprimem o sinal da gordura, como a gradiente-eco em fase e oposição de fase(29). 7 ? Parênquima hepático preservado na esteatose difusa Os locais mais comuns são a região perivesicular (Figura 19), subcapsular, o lobo caudado (Figura 20) e a porção medial inferior do fígado.
O parênquima preservado tem atenuação superior à do fígado esteatótico (Figura 21). A diferenciação com tumores se faz por sua atenuação, localização e morfologia. Nos casos duvidosos pode-se recorrer à cintilografia, à ressonância magnética e, caso necessário, à biópsia(6,8,30,31).
CONCLUSÃO As pseudolesões hepáticas são comuns na TC helicoidal e provavelmente aumentarão em incidência com a maior utilização dos tomógrafos "multi-slice". Em geral são facilmente distinguíveis de lesões hepáticas, sendo necessário estarmos habituados a reconhecê-las. A compreensão da etiologia dessas pseudolesões e o conhecimento do seu aspecto tomográfico são os primeiros passos para diferenciá-las de lesões verdadeiras e elevar a eficácia do método.
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Endereço para correspondência Recebido para publicação em 22/7/2002
* Trabalho realizado no Departamento de Diagnóstico por Imagem da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (Unifesp/EPM), São Paulo, SP. |