ARTIGO ORIGINAL
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Autho(rs): Silvia Falcão de Oliveira, Hilton Augusto Koch, Casimiro Abreu Possante de Almeida, Bianca Gutfilen |
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Descritores: Radiologia, Medicina legal, Radioscopia, Necropsia, Projéteis de arma de fogo |
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Resumo: IIIProfessor Adjunto da Faculdade de Odontologia da UFRJ
INTRODUÇÃO Quando a perícia necroscópica diz respeito a exames de indivíduos baleados, é fundamental o encontro e a arrecadação dos projéteis de arma de fogo. Ocorre que, quando um projétil é deflagrado, em sua estrutura ficam imprimidas ranhuras, adquiridas durante a passagem pelo cano da arma. Se o conjunto das estrias existentes no projétil recolhido de um cadáver, quando confrontado, for igual ao conjunto existente em um projétil disparado por uma arma conhecida, a perícia criminal estará habilitada a afirmar que o projétil suspeito saiu daquele cano em estudo, constituindo essa a base da perícia de projéteis de arma de fogo(1). Se o corpo a ser necropsiado corresponde à vítima de projétil único, a observação da ferida de entrada do projétil permite, eventualmente, que se estabeleça o trajeto percorrido no interior do corpo, pela sua relação com a ferida de saída. Mas, quando se trata de ferimento penetrante, e não transfixante do corpo, mesmo um disparo único pode causar transtornos na condução da perícia, notadamente se o projétil fizer um trajeto bizarro e localizar-se em sítio de difícil acesso. Em tal situação, ainda que o técnico de necropsias seja bastante experiente, o êxito da perícia só se dará através da radioscopia(2-4). A demanda de exames radiológicos no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto (IMLAP)-Sede revela estatística crescente a cada ano, sem que tenha ocorrido a adequação das instalações e equipamentos destinados a tal mister, bem como o aumento de recursos humanos e o indispensável investimento na sua formação específica. Surgem, assim, lacunas no atendimento, que levam a consideráveis prejuízos nas demandas periciais. Os exames necroscópicos, de forma rotineira, são efetuados no período diurno, das 9h00 às 21h00, quando ainda são possíveis recursos técnicos fundamentais, tais como a radioscopia. As necropsias de exceção, realizadas no período noturno por determinação de autoridades, ou aquelas realizadas em horários outros, carentes de técnicos de raios-X (RX) ou de aparelhagem em condições de uso, correm o risco de ficarem incompletas, pelos motivos já expostos. O presente trabalho aborda a participação da Radiologia nos exames necroscópicos, analisando as conseqüências decorrentes de perícias inadequadas em função de carências de recursos radiológicos, com especial enfoque nas perdas financeiras.
MATERIAIS E MÉTODOS Inicialmente foi feito o levantamento quantitativo de todas as necropsias realizadas no IMLAP, de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2001. Dentre aqueles exames foram selecionados, de acordo com o critério de inclusão estabelecido, os correspondentes aos cadáveres de baleados, destacando-se os que apresentavam justificativas pelo não recolhimento de eventuais projéteis de arma de fogo. As demais causas de morte violenta, ou aquelas decorrentes de causas naturais estabelecidas através da simples verificação de óbito, participaram como critério de exclusão, incluindo assim as mortes decorrentes de ação contundente, ação cortante, ação pérfuro-cortante, ação corto-contundente, ação térmica, ação elétrica, asfixias, intoxicações exógenas ou da atuação de outros tipos de energia. Também foram pesquisadas as exumações solicitadas no mesmo período.
RESULTADOS 1. Das amostras - A totalização dos dados apurados na pesquisa apontou 8.185 exames necroscópicos realizados no período de um ano, de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2001, sendo 3.122 (38%) referentes a corpos de baleados. Entre os 3.122 laudos de baleados, 309 (10%) deles continham justificativas, feitas pelos peritos relatores, quanto ao não recolhimento de eventuais projéteis de arma de fogo (Quadro 1), caracterizando tais exames como incompletos e, portanto, passíveis de indagações judiciais. Foram solicitadas, no mesmo período, 23 exumações, sendo 12 delas com a finalidade de arrecadar projéteis.
2. Dos custos - Os gastos referentes à realização de uma necropsia forense totalizaram R$ 996,85 (discriminados na Tabela 1). Os gastos referentes à realização de uma exumação totalizaram R$ 1.155,40 (discriminados na Tabela 2).
DISCUSSÃO Na literatura forense universal existe um consenso quanto à necessidade da adoção e da utilização sistemática de recursos radiológicos nas atividades necroscópicas(5-8). Na busca e recuperação de projéteis de arma de fogo são fundamentais aqueles recursos. No IMLAP, do Rio de Janeiro, a demanda de cadáveres, crescente a cada ano, somada à manutenção descontinuada dos equipamentos radiológicos e ao número insuficiente de técnicos de RX para compor as equipes, tem gerado lacunas na evolução dos trabalhos periciais, principalmente no que tange aos procedimentos necroscópicos. O levantamento realizado para a confecção deste trabalho apurou 3.122 laudos referentes a cadáveres de baleados, de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2001. Foi possível concluir que 10% deles contêm justificativas pelo não recolhimento de projéteis, significando dizer que foram sepultados 309 corpos contendo ainda, no seu interior, eventuais provas de crime. Tais relatórios, inadequados, podem, como conseqüência, gerar a exigência de uma complementação posterior da perícia, somente exeqüível através de exumação. A leitura cuidadosa dos laudos que deram origem a solicitações de exumações permite observar que em determinados corpos foi possível arrecadar alguns, mas não todos os projéteis; em outros corpos, nenhum projétil foi arrecadado. Ambas as situações são alvo de interesse da Justiça, pois quando um corpo é atingido por vários projéteis, pode ter sido vítima de diversos agentes na prática delituosa, sendo importantes os informes pertinentes à participação de cada projétil, para a obtenção do êxito letal. A pesquisa apurou que foram solicitadas 23 exumações, sendo 12 delas com a finalidade de arrecadar projéteis. Embora a quantidade apurada aparente ser inexpressiva em relação ao número de laudos incompletos, cumpre ressaltar que as exumações não costumam guardar contemporaneidade com os laudos que lhes dão origem, sendo requisitadas, não raras vezes, alguns anos após a perícia inicial. As exumações, realizadas para suprir as falhas ocorridas na evolução das perícias, além de promoverem embaraços na tramitação do processo judicial e de levarem sofrimento aos familiares que acompanham as diligências, causam prejuízos financeiros expressivos. De acordo com o levantamento de custos, foi possível demonstrar que os gastos provenientes de uma exumação excedem, em muito, aqueles gerados através de exames necroscópicos comuns, com participação da radioscopia. No ano de 2001 houve um custo adicional de R$ 13.864,80 aos cofres públicos, calculados a partir do custo de uma exumação ? R$ 1.155,40 ? multiplicado pelo número de necropsias incompletas de baleados ? 12. Se fossem computadas não como exumações em potencial, mas como exumações obrigatórias em cumprimento aos trâmites legais, os exames necroscópicos incompletos de baleados, realizados no ano de 2001, correspondentes a 309 laudos, determinariam um gasto adicional de R$ 357.018,60, calculados a partir do custo de uma exumação ? R$ 1.155,40 ? multiplicado pelo número de necropsias incompletas ? 309, ou seja, um gasto desnecessário e perfeitamente evitável se a Radiologia do IMLAP estivesse equipada, com recursos humanos e com material, na medida certa da sua importância no contexto médico-legal. Assim como ocorre na Medicina, há exigência de diagnósticos precisos e ágeis nos laudos periciais, para o correto atendimento à Justiça, e, para isso, a boa conduta técnica preconiza que o necropsista busque apoio nas especialidades que compõem o universo pericial, quando necessário. Contudo, com relação à Radiologia, aquele especialista tem-se conformado em desenvolver suas atividades de maneira econômica, em razão das barreiras financeiras existentes no serviço público, que interferem diretamente nos mecanismos operacionais e geram a busca de critérios alternativos de adaptação. Novas técnicas de imagens, como ressonância magnética e tomografia computadorizada, vêm sendo incorporadas gradualmente à prática forense mundial(9,10), embora problemas de custo e acessibilidade precisem ser resolvidos antes que essas técnicas possam começar a participar daquela rotina(11). Já é possível constatar que nos serviços médico-legais de diversos países os avanços da tecnologia contribuem não somente para as perícias necroscópicas, mas também para os exames forenses concernentes à clínica médico-legal(12-14). No entanto, no IMLAP, a carência de instrumental e de pessoal impede uma visão mais ampla acerca dos equipamentos modernos que poderiam contribuir para melhorias dos atos periciais, e são almejadas apenas as técnicas mais simples da Radiologia. Os dados obtidos permitem aos autores estabelecer as seguintes conclusões: 1) a prova pericial tem, na Radiologia, poderosa, confiável e insubstituível aliada, nos casos de cadáveres baleados; 2) todos os atos necroscópicos de baleados devem ser realizados seguindo protocolos específicos; 3) uma perícia incompleta em cadáver de baleado promove um gasto adicional de R$ 1.155,40, correspondente à realização de exumação posterior, para arrecadação de eventuais projéteis de arma de fogo; 4) para que, no Rio de Janeiro, a Justiça seja atendida nas suas necessidades, faz-se imprescindível que, em casos de cadáveres de baleados, o Instituto Médico-Legal conte com os recursos humanos e materiais necessários para a execução plena e segura dos exames radiológicos pertinentes.
Agradecimento Ao Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto, Rio de Janeiro, RJ.
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Endereço para correspondência Recebido para publicação em 24/6/2004. Aceito, após revisão, em 13/8/2004.
*Trabalho realizado no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto, Rio de Janeiro, RJ. |