Na ultrassonografia diagnóstica, um dos preceitos mais arraigados é a necessidade de jejum como condição para garantir a qualidade do estudo do abdome, reduzindo a quantidade de gás no trato gastrintestinal e propiciando a distensão satisfatória da vesícula biliar(1). O preparo preconizado para a ultrassonografia abdominal, na maior parte dos serviços, inclui instruções de jejum por um período que varia de 4 a 6 horas para crianças(2) e de 6 até 12 horas para adultos(3). Os reais benefícios deste procedimento raramente são questionados, menos ainda, postos à prova.
Desta forma, é extremamente revigorante para o campo da ultrassonografia o artigo de Rabelo et al.(4), publicado nesta edição da Radiologia Brasileira, que, por meio da comparação da qualidade de imagens obtidas na ultrassonografia abdominal de crianças, com e sem jejum prévio, buscam testar o paradigma do preparo abdominal para faixa pediátrica, relativizando, em conclusão, as vantagens advindas desta prática.
Quem realiza ultrassonografia em crianças, certamente, já se deparou com a dificuldade de conseguir um exame minimamente aceitável, pelo estado de irritabilidade em que elas se encontram após um período de jejum prolongado. Um colega, radiologista pediátrico, define a criança com fome como "um adversário a se respeitar"... O termo adversário dá a noção exata do embate em que se transforma o exame nessas circunstâncias, nas quais o vencedor quase nunca é o médico. Assim, frequentemente, vemo-nos obrigados a ceder e negociar, preferindo que a criança se alimente, para que possamos assumir o controle do exame. Ademais, o choro promove maior distensão gasosa que a produzida pela digestão. Experiências cotidianas desse tipo fortalecem a convicção de que, em crianças, o prejuízo à qualidade do exame ultrassonográfico do abdome depende fortemente de outros fatores, que não apenas aqueles sobre os quais o jejum possa exercer alguma influência.
Mesmo o estudo da vesícula biliar pode ser mais prejudicado pelo estado de agitação da criança que pela ingestão prévia de alimentos. Na maior parte das vezes, o uso de transdutores de alta frequência possibilita a avaliação diagnóstica. E sempre há a possibilidade de reexame, com preparo, nos casos inconclusivos. Sob esse enfoque, o jejum deixa de ser a regra, tornando-se exceção.
Conquanto seja um estudo inicial, sobre as variáveis passíveis de influenciar a qualidade dos exames ultrassonográficos em crianças, a grande contribuição do trabalho de Rabelo et al. é a de testar noções correntes na prática da ultrassonografia pediátrica, permitindo a revisão legítima de concepções e condutas.
Para finalizar, ressalto o outro ponto, não menos importante, abordado pelos autores, referente à necessidade de aprimoramento dos sistemas de avaliação da qualidade das imagens ultrassonográficas, que permitam estudos comparativos interobservadores mais confiáveis. Questão central e nevrálgica da ultrassonografia, método essencialmente operador-dependente, da qual, no entanto, não podemos nos esquivar, ainda que constitua um verdadeiro desafio!
REFERÊNCIAS
1. Windler EE, Lempp FL. US of the upper abdomen: factors influencing image quality. Radiology. 1985; 157:513-5. [ ]
2. Siegel MJ. Fígado. In: Siegel MJ, editor. Ultra-sonografia pediátrica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2003. p. 189-244. [ ]
3. Sinan T, Leven H, Sheikh M. Is fasting a necessary preparation for abdominal ultrasound? BMC Med Imaging. 2003;3:1. [ ]
4. Rabelo LAAA, Florêncio IR, Pirauá IM, et al. Crianças necessitam de jejum antes de ultra-sonografia? Radiol Bras. 2009;42:349-52. [ ]