ARTIGO ORIGINAL
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Autho(rs): Gabriela Irene Garcia Brandes1,a; Giuseppe D’Ippolito1,2,b; Anderson Gusatti Azzolini1,c; Gustavo Meirelles2,d |
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Descritores: Inteligência artificial; Radiologia; Estudantes de medicina; Educação; Especialidade médica. |
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Resumo: INTRODUÇÃO
A escolha da especialidade é um dos pontos cruciais na carreira de um estudante de medicina. É um momento de dúvidas, reflexão e autoconhecimento. Para alguns, a escolha é intuitiva, como uma vocação. Para outros, ela precisa ser muito bem pensada e ponderada, pois não é só por afinidade que se escolhe uma carreira. Diversos fatores também são levados em conta pelo aluno, como mercado de trabalho, estilo de vida pretendido, campo de pesquisa, perspectiva de crescimento da especialidade na academia, entre outros(1). A relação do estudante de medicina com a escolha de radiologia como especialidade tem sido um assunto discutido no meio acadêmico, majoritariamente em razão do desenvolvimento das novas tecnologias de inteligência artificial (IA), que muitos consideram potencialmente disruptivas, a ponto de alterar o modo como conhecemos e praticamos a radiologia(2–5). Justamente por estar na fronteira tecnológica da medicina, a radiologia é alvo de muitos questionamentos quanto ao seu futuro. Programas baseados em deep-learning são o centro das atenções em diversas pesquisas no mundo(3,6,7). O intuito é aplicar essa tecnologia à medicina, oferecendo aos computadores a habilidade de aprender a reconhecer padrões de imagem e aprimorar seus resultados a partir de uma base de dados. Há quem diga que eles serão capazes até mesmo de diagnosticar doenças por conta própria num futuro próximo. Por exemplo, estudo francês publicado recentemente demonstrou um algoritmo baseado em redes neurais convolucionais capaz de detectar lesões de menisco ao analisar ressonâncias magnéticas de joelho, e apresenta esse algoritmo como um primeiro passo para o desenvolvimento de ferramentas diagnósticas de IA ainda mais avançadas(6). Pesquisa recente realizada no Canadá revelou que a ansiedade relacionada ao impacto da IA na radiologia desencoraja vários estudantes de medicina a considerá-la como carreira. O estudo aponta que a comunidade radiológica deveria educar os estudantes sobre as potenciais repercussões da IA, para garantir que a radiologia seja percebida como uma opção viável de carreira a longo prazo(2). Por outro lado, um estudo sobre o tema, realizado na Alemanha, concluiu que os estudantes de medicina não se preocupam com a possibilidade de a IA substituir os radiologistas e estão cientes das possíveis aplicações e implicações da IA na especialidade e na medicina. O estudo também sugere que a radiologia deve liderar a educação dos alunos no contexto dessas tecnologias emergentes(4). Apesar da relevância do tema e das preocupações que desperta, são escassos os artigos na literatura que procuram estabelecer o impacto da IA sobre a escolha da especialidade médica e, particularmente, no contexto da radiologia. Diante dessa carência de estudos, da importância do assunto e da divergência de resultados entre os poucos artigos disponíveis(2,4), o objetivo do presente trabalho foi estabelecer o impacto da IA na escolha de radiologia como especialidade médica por estudantes de medicina na cidade de São Paulo. MATERIAIS E MÉTODOS Foi realizada pesquisa transversal online, opcional e anônima, em fevereiro de 2019, por meio de um questionário do Google Docs enviado por mensagem eletrônica para 360 estudantes de faculdades de medicina da cidade de São Paulo, escolhidas aleatoriamente. Foram questionados aspectos referentes à percepção pessoal sobre o impacto da IA na prática radiológica. O principal objetivo do questionário foi avaliar se o desenvolvimento das tecnologias de IA vem desestimulando os alunos a escolher a radiologia como especialidade. O questionário compreendia sete afirmações e uma questão de múltipla escolha sobre o tema. As afirmações deveriam ser graduadas, de acordo com escala de Likert, em níveis de concordância variando de 1 a 5, sendo: 1, discordo totalmente; 2, discordo; 3, não concordo nem discordo; 4, concordo; 5, concordo totalmente. As respostas 1 e 2 foram consideradas como negativas, a resposta 3 foi considerada como indiferente, e as respostas 4 e 5 foram consideradas como positivas. As afirmações contemplaram questões como: o quanto os alunos julgam conhecer as tecnologias de IA; o quanto as tecnologias de IA os desestimulam a escolher radiologia como especialidade; e se julgam que o mercado de trabalho do futuro radiologista está ameaçado. De acordo com as regras de proteção de seres humanos sujeitos de pesquisa, estudos baseados em questionários anônimos e facultativos não requerem aprovação por um comitê de ética em pesquisa(8). A análise estatística das informações coletadas foi feita de forma descritiva, mediante cálculo de frequências (em porcentagem). RESULTADOS A pesquisa coletou as respostas de 101 estudantes. A maioria dos estudantes (60%) estava no sexto ano, 17% cursavam o quinto ano e 23% cursavam o quarto ano de medicina. A pesquisa não contemplou estudantes que se encontravam nos três primeiros anos da graduação, pois existem evidências na literatura demonstrando que no início do curso médico os alunos ainda não têm uma opinião formada sobre qual especialidade seguir(1,9). Entre todos os estudantes, 53 (52,5%) acreditam que o mercado de trabalho para o radiologista está ameaçado pela IA e 37 (36,6%) acreditam que até a função médica assistencial do radiologista está ameaçada pela IA. No entanto, 65 dos respondentes (64,3%) alegaram não ter muito conhecimento sobre as novas tecnologias de IA e 32 (31,7%) gostariam de ter mais informações sobre o funcionamento e progresso dessas tecnologias antes de tomar uma decisão sobre exercer ou não a radiologia como especialidade médica. Do total de alunos, 75 (74,3%) relataram nunca ter considerado seguir radiologia como especialidade. Dos 26 alunos (25,7%) que já consideraram, 18 não consideram mais – 11 destes devido ao desenvolvimento das tecnologias de IA e 7 por outros motivos que não o desenvolvimento das tecnologias de IA. Os resultados integrais da pesquisa estão apresentados na Tabela 1. DISCUSSÃO IA consiste no ramo da ciência da computação dedicado ao desenvolvimento de algoritmos voltados para a execução de tarefas tradicionalmente associadas à inteligência humana, como a habilidade de aprender e resolver problemas, e este termo surgiu pela primeira vez em 1955(5). O tema IA está sendo amplamente discutido na nossa sociedade, assim como o seu impacto em numerosas atividades cotidianas e profissionais, que ultrapassam o âmbito da medicina e mais especificamente da radiologia(5). Muito do temor que este tema desperta está relacionado ao entendimento limitado por parte de ampla parcela daqueles envolvidos em discuti-lo. IA é um termo genérico que pode contemplar desde uma light IA, na qual estaria inserida uma vulgar calculadora de mesa, apta a fazer pouco mais do que as quatro operações matemáticas, até o que alguns chamam de strong IA, que contemplaria as redes neuronais convolucionais e, mais especificamente, o deep learning e o machine learning. Evidentemente que, quando se avalia a influência da IA na atividade radiológica, se entende primordialmente os aspectos ligados a essas últimas denominações(3). Apesar da relevância e atualidade do tema, ainda são escassas as pesquisas que procuram estabelecer o impacto da IA sobre alguns exercícios profissionais, e entre estes, os ligados à radiologia. Os dados do nosso trabalho sugerem haver receio entre os estudantes de medicina da cidade de São Paulo quanto ao futuro da radiologia, mas comprova-se que a maioria deles afirma desconhecer ou conhecer muito pouco sobre o atual patamar de evolução da IA. Isto se deve, possivelmente, ao fato de as tecnologias de IA não serem ativamente abordadas e discutidas durante a graduação de medicina, ou seja, os futuros residentes de qualquer especialidade e particularmente da radiologia não estariam sendo educados sobre as oportunidades e possibilidades que estão por vir nessa área do conhecimento. Dos respondedores que desistiram de fazer radiologia, mais da metade afirmaram que mudaram de ideia, principalmente em razão do maior peso da IA na prática clínica. No entanto, é interessante observar que essa mudança de direcionamento de carreira é comum, mesmo fora do contexto da IA, e que ocorre em até 70% dos alunos até o final do seu curso, pelas mais diversas razões(1). Quando se discute IA e radiologia, surgem importantes dúvidas: a IA poderá um dia substituir a função do radiologista como interpretador de imagens? Se sim, quanto tempo isso levaria e qual seria o papel do radiologista no mercado de trabalho? Quem seria o responsável por um exame interpretado e laudado por um algoritmo? Respostas para essas e outras perguntas são incertas. Não é possível prever de maneira precisa o futuro de uma especialidade a longo prazo, mas muito se especula sobre o assunto. Em março de 2019, a Sociedade Norte-Americana de Radiologia (RSNA) publicou um relatório sobre as conclusões do último encontro sobre IA e radiologia. A RSNA fornece inúmeros recursos para pesquisa e educação relacionados à IA, mas reconhece que há incerteza sobre como avaliar a tecnologia da IA para garantir que ela esteja pronta para a prática clínica. Segundo a RSNA, há uma ambiguidade entre considerar a IA como assistente ou adversária ao radiologista, e isso pode dificultar a atribuição de responsabilidade quando houver resultados clínicos indesejáveis decorrentes da IA. A RSNA se dispõe a liderar a avaliação das implicações éticas e legais da IA em radiologia, sendo esta uma das prioridades em suas futuras iniciativas(10). De maneira análoga, a Associação dos Radiologistas Canadenses entende que os radiologistas deveriam liderar a discussão sobre a aplicação e influência da IA no campo do diagnóstico por imagem(5). Apesar de toda a preocupação sobre o futuro, a procura pela especialidade não parece estar menos popular entre os estudantes. Em 2019, a prova de residência em radiologia e diagnóstico por imagem da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo teve uma relação de candidatos por vaga de 12, exatamente a mesma relação observada em 2015. No entanto, segundo informação colhida durante o Congresso da Associação Americana de Radiologistas Universitários, em Baltimore, em abril de 2019, o levantamento feito pelo Colégio Americano de Radiologia verificou que houve uma queda de 7% na procura por programas de residência em radiologia em 2018, quando comparado com o ano anterior; ainda não está claro qual seria a influência da IA nessa redução. Em artigos recentes, percebe-se que os fatores determinantes na escolha de uma especialidade médica dependem de valores culturais, fatores demográficos, sistemas educacionais e de saúde, variando bastante entre diversas regiões do mundo(1,9). No Brasil, os fatores mais importantes são a afinidade com a especialidade, a satisfação profissional e o estilo de vida/qualidade de vida relacionada à atividade(1,9). A valorização desses fatores poderia justificar, entre os estudantes de medicina, o aumento do interesse pela radiologia verificado desde os anos 1990(9,11). É interessante observar que entre os fatores destacados como relevantes na preferência por uma especialidade está o seu contato extracurricular durante o curso médico(1,9). Nesse sentido, investir em interações entre os alunos e a disciplina de radiologia, tendo a oportunidade de conhecer e entender melhor quais os principais aspectos relacionados ao exercício da profissão e à integração com a IA, poderia apoiar uma escolha mais consciente. A distribuição de especialidades médicas é um fator importante de equilíbrio para atender as necessidades dos sistemas de saúde. No Brasil existem 6,7 radiologistas por 100.000 habitantes, distribuídos de maneira desigual no território nacional, variando amplamente entre as unidades da Federação, desde 2,34:100.000 habitantes no Pará, até 16,34:100.000 habitantes no Distrito Federal(12). A densidade de radiologistas no Brasil encontra-se abaixo da média observada na União Europeia (12,9:100.000), mas maior ou semelhante à de alguns países europeus, como a Itália (3,3:100.000) e o Reino Unido (7,5:100.000)(12). Nos últimos, notou-se um aumento do interesse pela radiologia, o que tem permitido suprir a demanda por esses profissionais. Por outro lado, a percepção de ameaça da IA na carreira radiológica, relatada pelos estudantes de medicina, pode desmotivar equivocadamente a escolha desta especialidade, gerando um impacto demográfico indesejável no médio e longo prazos. O nosso estudo possui algumas limitações. Foram avaliados alunos de medicina de apenas uma cidade do país e isto representa uma amostra restrita. Esta limitação também se deu em outros estudos com objetivo semelhante(1). Trabalhos com maior abrangência poderão confirmar os resultados aqui apresentados. O número de respondentes foi reduzido (n = 101), mas obtivemos um índice de resposta ao redor de 28%, semelhante ou superior ao de outras pesquisas com o mesmo desenho(1,2). Também não procuramos estabelecer diferenças entre os participantes em função do seu sexo, o que já demonstrou influenciar na escolha da carreira médica(9,11). Finalmente, o fato de adotarmos um questionário com perguntas fechadas impossibilitou a obtenção de informações complementares de melhor qualidade ou maior especificidade para se aprofundar nas razões que levam o aluno a temer a inserção da IA na atividade clínica. CONCLUSÃO Os resultados observados neste estudo sugerem que a IA pode promover um impacto negativo na escolha da radiologia como especialidade por estudantes de medicina. Por outro lado, surgem evidências que indicam a existência de oportunidades para reduzir essa tendência ao se investir em educação e informação de qualidade, esclarecendo de forma realista e objetiva o real papel da IA no âmbito do diagnóstico por imagem. A radiologia pode continuar a se adaptar, como sempre fez com muito sucesso ao longo de sua história, e seguramente continuará a fazer. Afinal, as novas tecnologias provavelmente influenciarão todas as áreas da medicina nas próximas décadas, e se há uma especialidade que já demonstrou saber inovar, se amoldar e se reinventar, essa é a radiologia. REFERÊNCIAS 1. Cruz JAS, Sandy NS, Vannucchi TR, et al. Fatores determinantes para a escolha da especialidade médica no Brasil. Rev Med (São Paulo). 2010;89:32–42. 2. Gong B, Nugent JP, Guest W, et al. Influence of artificial intelligence on Canadian medical students’ preference for radiology specialty: a national survey study. Acad Radiol. 2019;26:566–77. 3. McBee MP, Awan OA, Colucci AT, et al. Deep learning in radiology. Acad Radiol. 2018;25:1472–80. 4. Pinto dos Santos D, Giese D, Brodehl S, et al. Medical students’ attitude towards artificial intelligence: a multicentre survey. Eur Radiol. 2019;29:1640–6. 5. Tang A, Tam R, Cadrin-Chênevert A, et al. Canadian Association of Radiologists white paper on artificial intelligence in radiology. Can Assoc Radiol J. 2018;69:120–35. 6. Roblot V, Giret Y, Bou Antoun M, et al. Artificial intelligence to diagnose meniscus tears on MRI. Diagn Interv Imaging. 2019;100:243– 9. 7. Halabi SS, Prevedello LM, Kalpathy-Cramer J, et al. The RSNA pediatric bone age machine learning challenge. Radiology. 2019; 290:498–503. 8. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Brasília, DF: Diário Oficial da República Federativa do Brasil; 24 maio 2016. Seção 1. p. 44–6. 9. Correia Lima de Souza L, Mendonça VRR, Garcia GBC, et al. Medical specialty choice and related factors of Brazilian medical students and recent doctors. PLoS One. 2015;10:e0133585. 10. Chokshi FH, Flanders AE, Prevedello LM, et al. Fostering a healthy AI ecosystem for radiology: conclusions of the 2018 RSNA summit on AI in radiology. Radiology: Artificial Intelligence. [cited 2019 Mar 27]. Available from: pubs.rsna.org/doi/10.1148/ryai.2019190021. 11. Lambert EM, Holmboe ES. The relationship between specialty choice and gender of U.S. medical students, 1990-2003. Acad Med. 2005;80:797–802. 12. Sheffer M, Cassenote A, Guilloux AGA, et al. O perfil do médico especialista em radiologia e diagnóstico por imagem no Brasil. São Paulo, SP: CBR; 2019. 1. Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), São Paulo, SP, Brasil 2. Grupo Fleury, São Paulo, SP, Brasil a. https://orcid.org/0000-0002-7759-7664 b. https://orcid.org/0000-0002-2701-1928 c. https://orcid.org/0000-0002-7718-9302 d. https://orcid.org/0000-0002-4964-4160 Correspondência: Dr. Anderson Gusatti Azzolini Rua Marselhesa, 29, Vila Mariana São Paulo, SP, Brasil, 04020-060 E-mail: azzolini.anderson@gmail.com Recebido para publicação em 3/8/2019 Aceito, após revisão, em 25/9/2019 Data de publicação: 14/04/2020 |