INTRODUÇÃO
A lipomatose pélvica é uma doença rara, descrita pela primeira vez no final da década de 50 por Engles(1). Caracteriza-se pelo acúmulo de tecido adiposo maduro na cavidade pélvica e ausência de delimitação por cápsula, podendo apresentar reações inflamatórias de permeio, causando compressão da bexiga, reto e vasos sanguíneos. As suas manifestações clínicas se expressam por sinais e sintomas de obstrução extrínseca destas estruturas. A exata incidência desta doença é desconhecida, entretanto, sabe-se ser mais comum no sexo masculino e em indivíduos de raça negra, acometendo mais frequentemente a terceira e quarta décadas de vida, a despeito de haver casos descritos em crianças e em idosos(2,3).
Este trabalho consiste em um relato de caso de lipomatose pélvica, haja vista seu infrequente aparecimento na literatura científica, destacando os seus aspectos de imagem na urografia excretora, tomografia computadorizada e ressonância magnética.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo masculino, 48 anos de idade, branco, natural de Barro, CE. Relatava dores lombares há três anos, com piora progressiva nos últimos dois meses, principalmente à esquerda, sem irradiação, de caráter compressivo e em pontadas, intensidade leve a moderada e alívio pós-miccional. Associado ao quadro doloroso, possuía síndrome disúria-polaciúria. Não apresentava antecedentes médicos relevantes. Ao exame físico, evidenciaram-se testículo atrófico e próstata não palpável ao toque retal. Portava biótipo longilíneo, com peso de 60 kg e altura de 1,65 m.
O estudo ecográfico demonstrou hidronefrose bilateralmente, sem outros achados. A urografia excretora confirmou a hidronefrose e evidenciou uma compressão extrínseca da bexiga, com deformidade desta, ocasionando a elevação do seu assoalho, compatível com a apresentação típica de "bexiga em lágrima ou em pera" (Figura 1). O pós-miccional não revelou resíduo urinário (Figura 2). A tomografia computadorizada mostrou grande quantidade de tecido adiposo ocupando a pelve desde seu estreito inferior, ocasionando a compressão extrínseca e elevação da bexiga urinária, sua deformação no sentido anterocranial, além da ocupação da loja prostática. Notavam-se ainda sinais de compressão extrínseca do retossigmoide, com alargamento do espaço retossacral (Figura 3). Adicionalmente, realizou-se estudo por ressonância magnética, que demonstrou a deformação da bexiga e do reto por tecido adiposo, também nos planos sagital e coronal. (Figura 4).
Figura 1. Urografia excretora demonstrando o achado de hidroureteronefrose moderada bilateral e "bexiga em lágrima ou em pera".
Figura 2. Urografia excretora mostrando "bexiga em lágrima ou em pêra", com elevação do seu assoalho, sem falha de enchimento
(A) e a ausência de resíduos urinários no pós-miccional
(B).
Figura 3. Imagens de tomografia computadorizada nos planos axial
(A) e sagital
(B) mostrando formação hipodensa (gordura) pélvica causando compressão extrínseca da bexiga e do reto.
Figura 4. Sequência de ressonância magnética ponderada em T1 em planos sagital
(A) e coronal
(B). Observar a deformação anatômica causada pelo acúmulo de tecido adiposo, com deformação anterocranial da bexiga e aumento do espaço pré-sacral.
DISCUSSÃO
De etiologia desconhecida, alguns autores propuseram teorias para tentar explicar o desenvolvimento da doença, cuja gênese consistiria na manifestação local de uma obesidade generalizada(4), outros afirmaram tratar-se de uma resposta a infecções urológicas de repetição, atribuindo ao processo inflamatório a origem do acúmulo de tecido adiposo. Há, ainda, autores que sugeriram ser a lipomatose pélvica uma variante da doença de Dercum, os que defendem a possibilidade de ser uma resposta local a fenômenos hormonais e metabólicos, como também os que, baseados na observação da maior ocorrência em homens e negros, sugeriram uma base genética(5).
As manifestações clínicas são decorrentes da compressão extrínseca das estruturas que compõem o aparelho urinário, o intestino baixo e o sistema vascular. Diante disso, podemos observar a ocorrência de disúria, polaciúria, noctúria, hematúria (menos frequentemente), urgência, incontinência e retenção urinária, além de infecções urológicas de repetição. Vemos, igualmente, constipação, tenesmo, diarreia, edema e tromboflebites dos membros inferiores, dores lombar, suprapúbica e perineal, ejaculação dolorosa, epididimites e orquites. Ademais, existe a possibilidade de haver insuficiência renal, inclusive com o desenvolvimento de hipertensão arterial(6).
Ao exame físico, é possível evidenciar dor à palpação abdominal, massa palpável na região hipogástrica, retenção urinária, elevação da próstata ao toque retal, edema de membros inferiores e hipertensão arterial.
O diagnóstico é realizado por meio dos exames de imagem, os quais evidenciam o acúmulo de tecido adiposo causando compressão das estruturas adjacentes, podendo ocasionar deformações morfológicas importantes. Ressalta-se a importância da urografia excretora, a qual evidencia a típica apresentação da "bexiga em pera ou em lágrima", além da uretero-hidronefrose. A tomografia computadorizada define a causa da compressão extrínseca da bexiga, demonstrando o envolvimento perivesical e perirretal por tecido gorduroso, sendo, dessa forma, suficiente para o estabelecimento do diagnóstico. A ressonância magnética possui a vantagem da não utilização de radiação ionizante e delineia-se como um método de maior acurácia no estudo das estruturas anatômicas acometidas, contribuindo com imagens de alta definição e precisão.
As opções de tratamento são limitadas. Intervenções conservadoras utilizando controle dietético, antimicrobianos, corticoides e, até mesmo, ensaios com radioterapia, não se mostraram eminentemente eficazes. A cirurgia encontra dificuldade na ausência de planos claros de dissecção para efetuar a liberação dos órgãos pélvicos. Alguns autores relataram sucesso terapêutico utilizando técnicas de lipoaspiração(7). Os sintomas podem ser controlados com a derivação urinária, porém o risco potencial de malignização deve ser lembrado e novas modalidades de tratamento devem ser estudadas.
Além da repercussão causada pelos fenômenos obstrutivos, a irritação crônica da parede vesical ou mesmo a compressão da drenagem linfática causadas pelo depósito do tecido adiposo podem ser a explicação para o frequente achado de processos proliferativos da mucosa vesical nos pacientes acometidos por essa doença, como cistites cística e glandular. A despeito de serem consideradas lesões benignas, deve-se considerar a possibilidade de se desenvolver adenocarcinoma vesical, justificando o acompanhamento periódico com cistoscopia, biopsiando lesões suspeitas, bem como realizando citologia urinária(8).
REFERÊNCIAS
1. Engels EP. Sigmoid colon and urinary bladder in high fixation: roentgen changes simulating pelvic tumor. Radiology. 1959;72:419–22.
2. Zaman W, Singh V, Kumar B, et al. Pelvic lipomatosis in a child. Urol Int. 2002;69:238–40.
3. Buitrago Sivianes S, Tallada Buñuel M, Vicente Prados FJ, et al. Pelvic lipomatosis. Diagnostic and therapeutic considerations apropos of 3 cases. Arch Esp Urol. 2002;55:900–6.
4. Sacks SA, Drenick EJ. Pelvic lipomatosis: effect of diet. Urology. 1975;6:609–15.
5. Tong RS, Larner T, Finlay M, et al. Pelvic lipomatosis associated with proliferative cystitis occurring in two brothers. Urology. 2002;59:602.
6. Hudolin T, Kastelan Z, Goluza E, et al. Pelvic and retroperitoneal lipomatosis: case report. Acta Clin Croat. 2010;49:465–8.
7. Halachmi S, Moskovitz B, Calderon N, et al. The use of an ultrasonic assisted lipectomy device for the treatment of obstructive pelvic lipomatosis. Urology. 1996;48:128–30.
8. Heyns CF, De Kock ML, Kirsten PH, et al. Pelvic lipomatosis associated with cystitis glandularis and adenocarcinoma of the bladder. J Urol. 1991;145:364–6.
1. Pós-graduado em Radiologia, Professor de Anatomia Humana e Radiologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) - Campus Cariri, Barbalha, CE, Brasil.
2. Estudantes de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) – Campus Cariri, Barbalha, CE, Brasil.
3. Estudante de Medicina da Faculdade de Medicina Estácio de Juazeiro do Norte, Juazeiro do Norte, CE, Brasil.
Endereço para correspondência:
Dr. José Marcílio Nicodemos da Cruz
Avenida Padre Cícero, 2085, Salesiano
Juazeiro do Norte, CE, Brasil, 63010-000
E-mail: nicodemosmarcilio@hotmail.com
Trabalho realizado na Universidade Federal do Ceará (UFC) – Campus Cariri, Barbalha, CE, Brasil.
Recebido para publicação em 28/9/2011.
Aceito, após revisão, em 1/3/2012.